Escreveu o Padre Felicidade Alves, em comentário ao «Manual dos Inquisidores» de Nicolau Emérico: «A Inquisição é um mero caso de espécie numa tradição multissecular de intolerância por parte da Igreja oficial. Quando esta tem a força à sua mão, a ela recorre para impor as suas leis e para esmagar os contestadores. Quando se sente impotente perante a evolução histórica do pensamento humano a Igreja bate em retirada e entrincheira-se numa espécie de zona de protecção ao serviço de Deus. E por detrás da suas próprias muralhas lança anátemas sobre os de fora, enquanto impede aos de dentro a liberdade de pensarem pela sua cabeça.» D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, não foi menos claro: «A Inquisição, sendo uma violação da Igreja, é também essencialmente uma violação da Fé cristã. A mais elementar análise desta mostra-a como um facto e um estado que não podem nascer nem situar-se inicialmente senão na consciência, sob a acção da graça, portanto postulando absolutamente a liberdade de qualquer coacção ou coerção. Toda a Tradição teológica se pode resumir na fórmula augustiniana: ninguém pode crer sem querer.»
Este livro sobre Frei Tomás de Torquemada (1420-1498) não se detém em complexas polémicas teológicas, mas acusa o poderoso Grande Inquisidor de «trocar o seu fervor para com Jesus Cristo pelo Jeová das suas origens.» E pergunta: «Por que razão Torquemada extrema a sua crueldade para com os convertidos? Porque, como ‘cristão’, lhe é imperativo castigar os que enganam aqueles que professam a fé em Jesus Cristo? Ou porque, como judeu, quer exterminar todos os que abandonaram a lei de Moisés?...» Na verdade, tendo presente «a impossibilidade de conhecer a infância e a primeira juventude do protagonista – cujos vestígios foram completamente apagados, muito provavelmente para evitar qualquer referência à ascendência judaica de Torquemada» –, as interrogações acima transcritas sugerem que algo deve ser esclarecido acerca da verdadeira religião do fanático dominicano.
Confessor, confidente e conselheiro de Isabel I de Castela, Frei Tomás terá uma influência decisiva na assinatura, pelos chamados Reis Católicos, em 1492, do Edito que determinará a expulsão de Espanha de todos os judeus. Feroz inimigo de todos os «marranos» (cristãos-novos), impedirá, até, os filhos e netos destes de ocupar cargos públicos, receber honrarias ou ordens sagradas, ser juízes, alcaides, governadores ou oficiais de justiça, mercadores ou notários, escrivães públicos, advogados, procuradores, secretários, contabilistas, chanceleres, tesoureiros, médicos, cirurgiões, sangradores, boticários, corretores… Hitler e Mussolini, também eles anticristãos, recuperarão e actualizarão esta sinistra tradição «católica» de exclusão dos judeus, salvaguardando assim uma pretensa «limpeza de sangue» que, aliás, havia sido abertamente aplaudida por grande parte do povo espanhol no século XV.
O Grande Inquisidor Geral foi durante anos um verdadeiro homem de Estado, bem apoiado por Isabel I de Castela e Fernando V de Aragão, tal como por três dos pontífices mais indignos da história – Sisto IV, Inocêncio VIII e Alexandre VI. Sisto IV, que «se preocupou com o dinheiro mais que com o Deus verdadeiro, com os prazeres carnais mais que com os bens eternos»; Inocêncio VIII, que impunha o suborno para a obtenção de chapéus cardinalícios e «nunca soube combater os abusos dos empregados pontifícios, que chegaram a formar uma verdadeira coalizão para falsificar bulas»; quanto a Alexandre VI – o dissoluto «Santo Padre» espanhol Rodrigo de Borja, Bórgia em italiano, pai de César Bórgia – «a sua figura entrou completamente no terreno da lenda; uma lenda feroz de crimes, simonias, leviandade e traições». Como sintetizou o historiador Godefroi Kurt: «O Papa Alexandre VI é a encarnação mais sinistra do paganismo por debaixo da mitra.»
Torquemada regressa às origens, isto é, rompe de facto com o Deus do Novo Testamento, infinitamente misericordioso, para abraçar o implacável Deus da Tora? Manuel Barrios parece acreditar que sim. De resto, o autor sabe bem que os responsáveis pela condenação, flagelação e crucificação de Jesus não eram judeus, mas romanos que dominavam Israel. Também sabe ou julga saber que Barrabás não era um malfeitor, mas um chefe ou cabecilha de zelotes, portanto um potencial libertador, um herói nacionalista. Indiscutível é que «o inquisidor viola todos os direitos humanos, apreende e arrasa judiarias, destrói templos e lares, interroga, exibe, humilha, tortura e queima o suspeito de judaizante, sem que exista algo que o possa deter». Acusou o sacerdote e ex-inquisidor Juan António Llorente: «Torquemada fez em Espanha, durante os dezoito anos do seu ministério inquisitorial, dez mil duzentas e vinte vítimas que morreram nas chamas; seis mil, oitocentas e sessenta que mandou queimar em efígie por morte ou ausência da pessoa e noventa e sete mil trezentas e vinte e uma que castigou com infâmia, confiscação de bens, prisão perpétua e impossibilidade de empregos; a soma das três categorias perfaz cento e catorze mil, quatrocentas e uma famílias perdidas para sempre, sem contar neste número as que sofriam quase a mesma coisa pela sua ligação de parentesco imediato.» Ainda que estes números possam pecar por algum excesso, modifica algo de essencial subtrair-lhes aqui umas dezenas de milhares, ali umas centenas, acolá mil? Ou será que alguém considerou necessário contar uma a uma as vítimas de Auschwitz para julgar os criminosos nazis que promoveram o genocídio dos judeus?
Alexandre VI «travará» a fúria assassina do dominicano, ao entender que o seu imenso poder se convertera numa ameaça certa para o Papado. A exorbitante autoridade de Frei Tomás desvanece-se quando é obrigado a repartir os seus poderes com o arcebispo de Messina e os com bispos de Córdoba, de Mondoñedo e de Ávila. E ficará reduzida à sua expressão mais simples com a nomeação deste último como juiz de apelação. É então que se retira – e morre. Não obstante, a «Santa Inquisição» ainda lhe sobreviverá em Espanha até 1813…
Manuel Barrios, «Torquemada, Inquisidor e Herege», Guerra e Paz, 2007, 165 páginas