António Rego Chaves
Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim nasceu em Colónia em 1486 e faleceu em Grenoble em 1535. Foi uma figura típica do Renascimento e, com Paracelso, forneceu a Goethe um modelo para o «Fausto». Doutor em Teologia, estudou línguas antigas, medicina e filosofia, consagrou-se ao ensino e divulgou as teorias do neoplatonismo e da Cabala. Expulso, por esse motivo, da cidade de Dôle, errou de universidade em universidade e em 1511 tomou parte no concílio cismático de Pisa. Permaneceu durante anos ligado à corte da princesa Margarida da Áustria, que governava os Países Baixos. Decorreu então o período mais fecundo da sua vida: dessa época datam, além de obras menores como o «Da Nobreza e da Excelência do Sexo Feminino» (1529), os seus dois mais importantes tratados: «Da Incerteza e da Vanidade das Ciências» (1527) e «Da Filosofia Oculta» (1531), que lhe valeram acusações de heresia e magia.
Informa Jorge Pereirinha Pires, no Prefácio que escreveu para esta edição: «O seu gosto pela polémica e o desdém com que tratava os seus adversários – normalmente os mais conservadores dos seus contemporâneos – granjearam-lhe vastas inimizades e algumas perseguições. A isso não será alheio o facto de, embora fosse católico, professar abertamente a sua simpatia para com as posições de Lutero: tal como ele, também Agrippa denunciava a escolástica, a veneração das relíquias e dos santos, e defendia o regresso à leitura das Escrituras. A verve de que dá mostras no texto que se segue testemunha, não apenas o virtuosismo dialéctico do autor – o objectivo expresso do escrito é defender um aparente paradoxo, o da superioridade da mulher sobre o outro sexo – mas também a sua ânsia de cair nas boas graças da princesa Margarida da Áustria e de se acoitar sob a protecção desta, numa fase em que o autor atravessava já as maiores dificuldades materiais. Apesar disso, entre estas páginas, é de esperar que o leitor venha a encontrar também um humor irreprimível.»
Neste fastidioso texto, sobressaem, no entanto, a futilidade do tema, a indigência da erudita argumentação, o carácter lúdico da mercantil «filosofia» exposta. Cornelius Agrippa procura divertir a verdadeira destinatária do seu ingente esforço: Margarida da Áustria, que lhe poderá pagar em moeda corrente as suas habilidades de cortesão. Porque não é para levar a sério quase tudo o que nos diz, e é penoso recordar, sem o menor sentido de humor, que muitos, ontem como hoje, não viveram ou não vivem para escrever, mas escreveram ou escrevem para comer. Esta foi uma obra que o autor, para não morrer de fome, elaborou e dedicou «à divina Margarida Augusta, princesa mui clemente dos Borguinhões austríacos». Paz ao seu estômago, paz às suas almas.
Posto isto, o texto: por que motivo será a mulher superior ao homem? Segundo o autor, argumentos da Antiguidade Clássica e da Bíblia, desde Adão e Eva, não faltam. Mas passemos aos dados biológicos, estéticos e eróticos, vejamos o que de facto o fascina num corpo feminino: «Após o rosto vem um pescoço esguio, e alto longo, que se eleva sobre um par de ombros perfeitamente redondos, a garganta, ou o gorgomilo delicado, esbranquiçado, e munido de uma medíocre grossura: a voz doce, a palavra agradável; o peito amplo, revestido de uma carne unida, polida, e relevada nessas duas bossas brancas e duras, a que chamamos tetas; essas mamas, tal como o ventre, são de uma figura redonda: os lados moles; o dorso plano e elevado, os braços longos, as mãos rechonchudas, os dedos alongados em juntas graciosas e polidas; os flancos e as coxas roliças; a perna carnuda; as extremidades em forma orbicular; enfim, sem falarmos de uma certa jóia natural, cuja conquista causa no nosso sexo tanta agitação, e muitas vezes tanto sangue, todos os membros da mulher estão plenos de suco.» Pese embora o excelente domínio da língua portuguesa de Jorge Pereirinha Pires, serão «nacos de prosa» como este dignos de mais do que um fugaz e melancólico sorriso?
Outras «pérolas»: «Uma menina de dez anos, e mesmo menos, pode suportar o assalto amoroso, ao passo que o homem exige um número de anos bem maior para poder levantar a lança, e para ver a sua espada em estado de apontar.» (…) «A maravilha das maravilhas, o milagre dos milagres, e que ultrapassa toda a admiração, é que uma mulher sozinha, e sem o concurso, a influência, a operação do macho, haja podido conceber uma natureza humana.» Mas que mulher? A Virgem Maria, pois então! «Após o Salvador, vitorioso e triunfante da morte, haver saído do túmulo, a quem se fez ele ver, a quem apareceu em primeiro lugar? Não correu para junto das mulheres?»
Nas últimas páginas encontramos – finalmente! – abordado um tema que cada vez mais perturba os cristãos. Ei-lo: «O que há de mais escandaloso e de mais gritante é que seja proibido ao belo sexo subir à cátedra e pregar a palavra de Deus. Oh, como se fariam belas conversões! Contudo, tal proibição é directamente oposta à Escritura, pois o Espírito Santo aí promete em seu profeta Joel entrar na cabeça da mulher, quando diz: ‘E vós as raparigas profetizareis.’ Efectivamente, no tempo dos apóstolos, as mulheres ensinavam publicamente, o que se vê pelos exemplos de Ana a profetisa, das filhas de Filipe, e por Priscila, essa serva teóloga. É pois certo que as mulheres deveriam ser admitidas na doutrinação; e quem pode duvidar de que o ministério da palavra lhes não conviesse mais que aos homens? Mas estes legisladores modernos, que, para estabelecerem suas tradições, destruíram e aniquilaram o comando de Deus, são tão mesquinhos que ainda que nossa fêmea nos leve infinitamente a melhor, pela excelência de sua natureza, e pela mui grande nobreza da sua dignidade, eles não deixaram de declarar directamente e indirectamente, por palavra e por efeito, que esse sexo é de uma condição mais vil, mais baixa que o nosso, tanto que segundo esses sacrílegos e esses blasfemadores, o último dos homens vale mais em natureza que a mulher mais perfeita e mais completa.» Chegará esta voz ao Vaticano e ao Opus Dei?
Cornelius Agrippa, «Da Nobreza e da Excelência do Sexo Feminino», Frenesi, 2007, 93 páginas