António Rego Chaves
Em 1997, quando foi atribuído o Nobel da Literatura a Dario Fo, as reacções estiveram longe de ser unânimes. De facto, a Academia de Estocolmo distinguira alguém que se tornara célebre pela irreverência, pelas virulentas críticas aos «senhores do mando», pela intransigente defesa dos «condenados da terra» e que, «na tradição dos jograis medievais, fustigara o poder e restaurara a dignidade dos humilhados». Claro que tal «anarquismo» não poderia agradar a todos os públicos, em especial aos círculos políticos, sociais e religiosos mais conservadores, Vaticano de João Paulo II e de Joseph Ratzinger incluído, e em lugar de tão grande quanto lamentável destaque.
Numa entrevista que nessa ocasião concedeu a Pierre-André Boutang, o incómodo autor-actor-encenador indicou alguns dos temas preferenciais dos seus textos: a condição da classe operária, o desemprego entre os estudantes recém-formados, a discriminação das mulheres, os pobres e «sobretudo as pessoas que não têm poder, que têm de agir com desespero para obter o que têm o direito de ter». Consciencializando a esperança e a revolta dos humilhados, Dario Fo incorreria na cólera da extrema-direita ligada às «forças da ordem», que levaria a cabo uma miserável operação de violação e tortura de Franca Rame, sua mulher e companheira de múltiplas batalhas no teatro e na política há mais de 50 anos. No entanto, Fo não capitulou. Considerou ser seu dever continuar: «Somos intelectuais. É já um grande privilégio que a Fortuna nos concedeu. A única maneira para pessoas como nós de estar presentes é fazer arte, a arte que fala das necessidades dos homens, da justiça, do sofrimento. Não é verdade que o teatro seja uma coisa que se pode ver assim, à noite, distendido… Não! É uma coisa que violenta as consciências e que procura fazer nascer uma nova forma de raciocinar.»
«A Terra dos Mezaràt – isto é, «A Terra dos Morcegos» –, autobiografia deste intelectual nascido em 1926, centra-se num período que abarca os seus primeiros sete anos de vida e não se desenvolve para além do fim da II Guerra Mundial. São as suas raízes, a sua família, as suas peripécias infantis e juvenis que sobressaem, aqui e ali salpicadas pelas sombras de Mussolini, dos «camisas negras», da invasão da Abissínia, da deportação de judeus para a Alemanha nazi, da perseguição aos antifascistas, dos fuzilamentos de «partigiani», dos bombardeamentos dos Aliados e dos milhares de «mortos colaterais» que provocaram em Itália. «Os bombardeiros chegavam em vagas sucessivas. Nós ficávamos ali, nos campos, de cara para cima, como que petrificados.» Sem apelar para as emoções do leitor, Dario Fo descreve com o rigor próprio de um mestre da reportagem – e com que subtil ironia! – o que viu e ouviu. Não julga, narra. Mas adverte-nos, emoldurando uma reflexão do incomparável «fabulador» que foi Swift: «Há períodos na vida de um homem que passam deslizando sem deixar rasto na sua lembrança e outros que, apesar de curtos, produzem sulcos profundos na memória, deixando gravado cada momento como se tivesse sido esculpido na pedra.»
O menino acompanha um pai de quem se orgulha – funcionário dos caminhos-de-ferro, antifascista e responsável por uma rede que trata de fazer chegar à Suiça judeus, perseguidos e prisioneiros em fuga –, para as localidades das várias estações aonde este vai sendo colocado. Assim chega a Porto Valtravaglia, cujos habitantes eram alcunhados de «Mezaràt», «meios-ratos», morcegos. «Isto pelo facto de a maioria viver e trabalhar de noite. Era inevitável: os fornos da vidreira tinham de funcionar 24 horas por dia.» (…) «O mesmo acontecia com os operários de serviço aos fornos de cal, com os pescadores (…) e sobretudo com a pequena comunidade quase histórica dos contrabandistas que actuavam de preferência na escuridão.» Ora muitos desses homens provenientes de toda a Europa, sobretudo os sopradores de vidro, fosse nas tabernas, nos cafés ou nas casas de pasto, dia e noite, à saída ou à espera do seu turno, eram fascinantes contadores de histórias, charladores, fabuladores. Comenta Dario Fo: «Naquela altura, como miúdo que era, não tinha consciência de que, naquela estranha forja de línguas e dialectos, estava a frequentar uma universidade de comunicação única, uma experiência que viria a permitir-me compor infinitos módulos expressivos de uma liberdade desconhecida.» E acrescenta: «O meu primeiro mestre de ‘conta’ (conto, história em dialecto lombardo) foi sem dúvida o avô Bristìn, mas naquela altura eu estava a frequentar nada mais nada menos do que um verdadeiro Mestrado de Jogral, onde aprendia as mais diversas técnicas e formas de fabulação.» (…) «Só mais tarde, quando já tinha adquirido uma assinalável experiência de palco, percebi que o ‘fabular’ foi a báscula que me levou a exprimir-me em forma épico-popular». Mas quem era o avô Bristìn? Segundo o próprio, começara por ser um «Perdapé», isto é, pertencera ao último nível, o mais baixo, nas categorias dos camponeses, constituído pelos arrendatários que só têm o direito de apanhar aquilo que resta da colheita depois de o dono ter tirado a sua parte fixa…e se o ano correr mal, morrem à fome. O contrato dos «Perdapé» chamava-se «angheria» (em italiano, vexame). «Tinha nascido para ‘perder os pés’, isto é, estava destinado a gastar os pés mergulhados na terra de sol a sol.» Mas acabaria por conquistar a sageza, levando Fo a evocar Montesquieu e a concluir: «Os eruditos sabichões são aqueles que com termos e expressões complicados conseguem comunicar o nada absoluto.» (…) «O avô era precisamente o contrário». No seu funeral, alguém sentenciaria: «Quando morre um camponês que sabe da sua terra e da história dos homens que a trabalham, quando morre um sábio que sabe ler a Lua e o Sol, os ventos e o voo dos pássaros, como sabia o Bristìn, não é apenas um homem que morre: é uma biblioteca inteira que arde!» O Nobel seu neto soube salvar dessa bela «biblioteca» uma mão-cheia de generosas páginas que decerto justificam hoje o radical anti-berlusconismo de que nunca tem cessado de dar provas.
Dario Fo, «A Terra dos Mezaràt», Ambar, 2005, 191 páginas