António Rego Chaves
O filósofo Baruch de Espinosa (1632-1677), nascido em Amesterdão e filho de judeus expulsos de Portugal, excelente conhecedor da Bíblia e do Talmude, não foi apenas o celebrado autor dos «Princípios da Filosofia de Descartes» (1663), do Tratado Teológico-Político» (1670), da «Ética», do «Tratado sobre a Reforma do Entendimento» e do «Tratado Político (todos póstumos, 1677). Foi também, no dizer de Martial Gueroult, um reformador da nova filosofia, da religião tradicional e político audacioso. Pagou caro todas estas ousadias: tentativa de assassínio por um fanático judeu, excomunhão pela sinagoga de Amesterdão, exílios vários. Hegel não poderia ter sido mais incisivo ao referir-se ao seu ilustre antepassado na radical inovação no terreno da meditação filosófica: «Espinosa é um ponto crucial na filosofia moderna. A alternativa é: Espinosa ou nada de filosofia… Quando se começa a filosofar, deve-se começar por ser espinosista. A alma deve banhar-se neste éter de uma substância única na qual tudo o que se acreditou ser verdadeiro desapareceu.»
Maria Luísa Ribeiro Ferreira escreve que, «em cada uma das grandes temáticas que Espinosa considera, há um elemento estranho à razão, que no entanto a provoca e nela interfere, assumindo-se como impulsionador do seu percurso», mas que em todos estes domínios (sejam eles a metafísica, a ética, a política, a antropologia ou a gnosiologia) «a razão tem sempre a última palavra». (…) «O racionalismo espinosiano é fruto de um esforço e o triunfo da razão é a etapa terminal de um processo». A especialista do pensamento de Espinosa deixa também bem claro que «foi no diálogo (por vezes violento) com a tradição religiosa que o filósofo dela se demarcou, optando por vias existenciais e cognitivas onde a razão tivesse a última palavra».
As «Cartas» de e a Espinosa foram editadas em 1677, logo após a sua morte. As por ele assinadas são, na maioria, respostas a perguntas originadas pela leitura e estudo das suas primeiras obras publicadas. Não trazem grandes novidades susceptíveis de iluminar o seu pensamento, quer se refiram à lógica e à metafísica, à física, à exegese bíblica ou à política. Quanto aos textos agora dados à estampa pela Editorial Teorema, são os contidos em seis epístolas trocadas no decorrer do ano de 1674 com Hugo Boxel, acerca do qual pouco mais se sabe senão que era na altura um jovem doutor em Direito, tendo interrogado o «penetrantíssimo» Baruch de Espinosa acerca das aparições, dos espectros e dos espíritos. Pergunta o inquieto jurista: «Acreditais na sua existência? Que pensais? Quanto tempo vos parece que ela dura? Uns acham que são imortais, outros dizem que estão sujeitos a morrer. Na dúvida em que me encontro, seria para mim precioso que pudésseis instruir-me acerca do que pensais.»
Espinosa lá vai respondendo, sempre didáctico, com a escassa paciência que ainda lhe resta, ao atrevido que vem perturbar a sua reflexão sobre Deus, o Homem e o Mundo, obrigando-o a debruçar-se sobre um tema que nada tem a ver com as suas preocupações mas adiantando-lhe que «é o desejo que leva a maior parte das pessoas a contar as coisas, não como realmente são, mas como elas desejam que sejam e é a esperança que nutrem de se darem muito mais facilmente a conhecer mediante narrações de espectros e de espíritos do que por relatos sérios que alimenta esses contos». Mas, por vezes, resvala-lhe a caridade (judaica, cristã?) para um assomo de irritação: «Fico estupefacto, confesso, não tanto com as histórias que se contam, mas com os que as escrevem: e surpreende-me que homens dotados de inteligência e discernimento façam tal uso do seu talento e dele abusem ao ponto de quererem persuadir-nos de sandices tais.» E só depois de muito atenazado pelo insistente doutor em leis Espinosa se digna abordar um tema essencial do seu pensamento: «À pergunta que me fazeis, a saber, se tenho de Deus uma ideia tão clara como do triângulo, respondo: “Sim!” Se me perguntardes, “Tendes de Deus uma imagem tão clara como do triângulo?”, respondo: “Não!”, porque não podemos conceber Deus pela imaginação, somente compreendê-lo pelo entendimento.»
O diálogo epistolar chega ao fim com esta irrespondível tirada de Espinosa: «A autoridade de Platão, de Aristóteles e de Sócrates não têm para mim grande valor. Teria ficado muito surpreendido se me tivésseis citado Demócrito, Epicuro, Lucrécio ou qualquer outro dos atomistas e dos defensores dos átomos. E não é de admirar que aqueles que comentaram as qualidades ocultas, as formas substanciais e mil outros disparates tenham inventado espectros e espíritos e acreditado nas sibilas a fim de rebater a actualidade de Demócrito, cuja muita fama invejavam a tal ponto que queimaram todos as suas obras, publicadas por ele com uma dedicação tão digna de elogios. Se estivéssemos dispostos a acreditar nisso, que razões teríamos para negar os milagres da Virgem Maria e de todos os santos, milagres consignados por tantos filósofos célebres, por tantos teólogos e historiadores que poderia citar mais de cem destes últimos contra um, se tanto, a favor dos espectros?»
Estava tudo dito, Baruch de Espinosa esgotara o seu tempo disponível para um intruso com quem percebera não ter quaisquer afinidades. E põe termo ao inútil e fastidioso carteamento: «Senhor, alonguei-me mais do que era minha intenção e não quero dar-vos mais incómodos por causa de assuntos com que não concordareis, sei-o, porque seguis princípios muito diferentes dos meus.»
Esgotara-se-lhe a paciência, apesar de toda a sua tolerância religiosa e ideológica, a ele que tão corajosamente defendera a livre interpretação e crítica das Escrituras, enquanto era atacado por Leibniz e pelos cartesianos e se sujeitara a ser acusado e condenado por ateísmo e impiedade. Nem três anos restavam ao genial pensador para concluir a sua obra e tentar publicá-la ainda em vida, contra ventos judaicos e marés cristãs…
Espinosa, «Espectros e Espíritos», Editorial Teorema, 2005, 69 páginas