António Rego Chaves
Emerge desta obra, centrada na personalidade intelectual de António Sardinha (1887-1925), deixando deliberadamente em discreta penumbra o militante político, uma evidência: o corifeu do Integralismo Lusitano foi alguém demasiado complexo para ser descrito em breves palavras. Apesar da sua curta existência, seria longa e sinuosa a trajectória ideológica que percorreria. Garrett e Herculano, António Nobre e Eugénio de Castro marcaram a sua juventude, tal como, em Coimbra, onde se licenciaria em Direito, a sua adesão ao republicanismo e, mais tarde, desiludido, ao absolutismo monárquico. Algo de inédito surge neste inquérito à evolução do biografado: as cartas que dirigiu a sua mulher, Ana Júlia, antes e depois do casamento. Importaria perguntar se tal fonte deve ser acolhida sem redobradas cautelas: a autora parece não ter posto o problema e não encarar a hipótese de a imagem que por via epistolar António Sardinha fornece de si próprio ser, não autêntica, mas ideal. Ora, ainda que a investigação em tal domínio possa revelar-se um quebra-cabeças, talvez o biógrafo não deva dispensá-la...
A questão põe-se, sobretudo, quando António Sardinha procura justificar o quase injustificável, como as suas metamorfoses ideológicas ou viragens políticas. Para um homem sobre quem desde há muito impende a acusação de «oportunismo», até por ter feito um «casamento de conveniência» com uma rica herdeira alentejana, a questão não é despicienda, ainda que se queira acreditar na sinceridade de um indivíduo mais permeável à intuição e ao instinto do que a deduções estritamente racionais. Certo é que, até encontrar a última das suas contraditórias «verdades», o autor de «O Valor da Raça» (1915) percorreu um tortuoso caminho. Depois tudo parece linear – ou menos difícil de entender. No entanto, o mesmo intelectual, sempre sedento de protagonismo literário ou político, foi um inflamado igualitarista e um obcecado por questões de origem fidalga, ora seguidor de Teófilo Braga, ora de Maurice Barrès, ora conturbado agnóstico, ora católico fervoroso, ora apaixonado pelo neolusitanismo de Manuel da Silva Gaio, ora defensor da «aliança peninsular». Passeou-se de gravata vermelha para comemorar o assassínio de D. Carlos, apoiou D. Manuel II depois de lhe chamar ‘El-Rei Poltrão’, deslizou de um ruidoso anseio de renovação das mentalidades para o mais reaccionário dos tradicionalismos, protagonizou ambiguidades e tentações germanófilas durante a Grande Guerra, apoiou as ditaduras de Pimenta de Castro e de Sidónio Pais, participou na tentativa de restauração monárquica de 1919 mas demarcou-se de Paiva Couceiro. Escreve a autora: «Simples mistificador ou ‘cata-vento’ político para uns, formidável visionário para outros, paradigma intelectual fundador da direita reaccionária e tradicionalista para outros tantos, e mais recentes, ou ainda directo inspirador do salazarismo para ainda mais outros, Sardinha foi, no mínimo, o intelectual português menos consensual do primeiro quartel do século XX.» Assim será. Mas poderá um homem de carácter ter abrigado tão grandes incoerências?
Que pensar hoje de um poeta que nos legou pérolas como esta, dada à estampa em 1915, em plena Grande Guerra: «Oh, a existência plena, a grandes haustos!/ Que belo o amor do Risco e do Comando! Ser chefe! Conduzir os homens em rebanho!/ Que embriaguez não há-de ser a da conquista!/ Cheira a chacina. E eu tremo!» Irreprimível desvario juvenil? Irresponsável culto da violência? Prenúncio do nazi-fascismo?
Fosse como fosse, não lhe faltava engenho retórico. Repare-se neste texto do mesmo ano: «Francófilo que me mostrei, já em público, eu desejo agora veementemente a vitória da Alemanha. Só pela vitória dos Impérios Centrais nós teremos, com a derrota da Maçonaria, o restabelecimento da ordem legítima que permitirá à França ressarcir-se e a nós curar-nos. Cartago (a Inglaterra) começa, então, a afundar-se no seu rochedo do mar da Mancha.» Instado a justificar a sua aparente «germanofilia», responde que «na Alemanha não é a Alemanha propriamente quem resiste. Quem resiste na Alemanha é a Monarquia». Não dizia, claro, que a Monarquia também em Cartago resistia, pois já estigmatizara Londres pelo seu apoio à República Portuguesa.
António Sardinha não se fica pelo ódio irracional à Revolução Francesa e à Maçonaria. Incorre num execrável anti-semitismo, chegando a compor poemas em louvor da Inquisição ou a exigir que o nome de Guerra Junqueiro, que considerou «poeta duvidoso e judeu verdadeiro», fosse «riscado do número dos portugueses».
Poucos meses antes de morrer, declararia: «Há-de dar-se fatalmente um grande acontecimento nacional, num prazo mais ou menos breve. (…) Este acontecimento nacional, inevitável, tem de colocar de um momento para o outro monárquicos e republicanos de acordo para salvar o Estado republicano ou repor o Estado monárquico. Mas para salvar a nação. (…) Logo que, na consciência de todos os bons portugueses, que os há ainda nos monárquicos e nos republicanos, se faça luz sobre a verdadeira situação portuguesa, a união nacional far-se-á.» Comenta a autora: «Em 1924, porém, Sardinha estava longe de saber que já não veria chegar o 28 de Maio de 1926, o ‘acontecimento inevitável’ que profeticamente aqui anuncia, mas que, de facto, e dadas as circunstâncias políticas em que se debatia o país, não era muito difícil de adivinhar.» Curiosamente, logo após a sua morte, numa carta de condolências da direcção da Associação da Faculdade de Direito de Lisboa dirigida à viúva de António Sardinha e assinada por um certo Marcelo Caetano, este afirma uma admiração nunca desmentida por aquele a quem virá a chamar, em 1927, «o meu inesquecível Mestre».
É bem sabido que os historiadores se proíbem de especular acerca do que teria passado se algo que não aconteceu tivesse acontecido. Mas os seus leitores são livres de imaginar o que se teria passado se António Sardinha tivesse sobrevivido mais meia dúzia de anos. Haverá algum capaz de duvidar que aplaudiria freneticamente Salazar?
Ana Isabel Sardinha Desvignes, «António Sardinha – Um Intelectual no Século», Imprensa de Ciências Sociais, 2006, 291 páginas