António Rego Chaves
Hélène Berr (nascida em 1921) é uma jovem judia filha de pais abastados e vive na Paris ocupada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Começa a escrever um diário na Primavera de 1942. Não obstante uma notável cultura literária, a inicial despolitização da autora não oferece dúvidas. Observamos a sua educação sentimental, entregue às leituras preferidas (Keats, Dostoievski, Shelley) ou ao violino, descendo, a partir da Sorbonne, um «Boulevard Saint-Michel inundado de sol, cheio de gente», reencontrando a sua «alegria familiar, maravilhosa». Anota: «A partir da Rue Soufflot, até ao Boulevard Saint-Germain, estou em território encantado.» O sofrimento alheio, porém, levá-la-á a reflectir: «Sei agora o que é a cobardia; não temos o direito de pensar apenas na poesia sobre a terra; é uma magia, mas é sumamente egoísta.»
Mais um esforço e teria atravessado o fosso que a levaria a compreender o que se passava à sua volta, na Alemanha e no resto de um mundo onde a guerra ceifava todos os dias as vidas de milhares de seres humanos. Mas ainda era cedo para ela entender. De súbito, surge a humilhação: como qualquer judeu com mais de seis anos, será obrigada a ostentar a estrela amarela e a viajar sempre na última carruagem do metropolitano, por muito que a fascinem o chilrear dos passarinhos e as melodiosas palavras de Paul Valéry. Pouco depois, anuncia-se o começo da tragédia pessoal. Agora já não se trata das detenções, das torturas, das deportações, dos fuzilamentos de longínquos familiares ou de simples conhecidos. O pai, Raymond Berr, vice-presidente e director-geral das fábricas Kuhlmann, é preso. Cometera o «crime» de não usar a estrela amarela bem cosida ao fato. Internado em Drancy, o seu destino mais provável seria um campo de concentração. Salva-o uma caução paga pela empresa onde trabalha; mas a pena capital apenas fica suspensa. Acabará assassinado em Auschwitz por um obscuro médico polaco, fanático anti-semita.
No Verão de 1942, Hélène inscreve-se na União Geral dos Israelitas Franceses (UGIF), organização criada no ano anterior pelo Governo de Vichy. Torna-se, devido a esse facto, titular de um certificado que a põe, em teoria, ao abrigo das perseguições ordenadas pelos nazis. Trata-se de um alto preço moral a pagar para permanecer em Paris e salvar a pele: a jovem tem plena consciência de que está a fazer o jogo dos alemães e que muitos a tomarão por colaboracionista. Mas não recuará até ser, por seu turno, apanhada e conduzida sucessivamente para Auschwitz e Bergen-Belsen, onde morrerá em Abril de 1945, dias antes da libertação do campo pelas tropas britânicas.
Escreverá em Paris, no entanto: «Antes, eu ria. Agora o sentido de humor parece-me um sacrilégio.» (…) «Tenho um dever a cumprir ao escrever, porque é preciso que os outros saibam. A cada hora do dia repete-se a dolorosa experiência que consiste em nos apercebermos de que os outros não sabem, não imaginam sequer os padecimentos de outros homens, e o mal que alguns infligem a outros. E sempre tento fazer esse penoso esforço de narrar. Porque é um dever, talvez o único que posso cumprir.» De facto, neste por vezes arrepiante texto escrupulosamente anotado e traduzido por Luís de Barros para português de lei, surgem numerosos apontamentos que não nos deixam perder de vista a repugnante realidade da ocupação nazi: os casos concretos evocados dão pleno sentido à justeza do termo «barbárie» quando aplicado aos crimes dos alemães em França – e também aos de muitos franceses, seus solícitos auxiliares como abjectos denunciantes ou como zelosos executores das ordens do inimigo.
Deparamos, também, com outros inequívocos sinais de que a autora sabe superar o seu individualismo, como quando escreve: «As amizades que se teceram aqui (…) ficarão marcadas por uma sinceridade, uma profundidade e uma espécie de ternura grave que ninguém poderá jamais conhecer. É um pacto secreto, selado na luta e nas provações.» Demarca-se dos sionistas da UGIF, adeptos do gueto: «Não, eu não pertenço à raça judaica. Se pudéssemos viver no tempo de Cristo… Não havia senão os judeus e os idólatras, os crentes e os ignorantes. É daí que deve partir toda a discussão. Esta gente tem o espírito estreito e sectário. E o mais grave, neste momento, é que eles justificam o nazismo. Quanto mais eles se encerram em gueto, mais os perseguirão. Porquê fazer Estados dentro de Estados?» (…) «O judaísmo é uma religião, e não uma raça.»
Hélène Berr não poupa os católicos: «Os católicos já não dispõem do livre arbítrio da sua consciência; fazem o que os padres lhes dizem. E estes não são mais do que homens fracos, e muitas vezes cobardes ou limitados. Se o mundo cristão se tivesse levantado em massa contra as perseguições, não teria sido bem sucedido? Estou segura disso. Mas ele já se deveria ter erguido contra a guerra, e não o pôde fazer. Será o Papa [o inerte e silencioso Pio XII] digno de ter o mandato de Deus sobre a Terra, ele que permanece impotente perante a violação mais flagrante das leis de Cristo? Merecerão os católicos o nome de cristãos quando, se eles aplicassem a palavra de Cristo, não deveria existir uma coisa chamada diferença de religião e mesmo de raças? E quando dizem: a diferença entre vocês e nós está em que nós cremos na vinda do Messias e vocês continuam à espera dele… Mas o que fizeram eles do Messias? Continuam tão maus como antes da sua vinda. Crucificam Cristo todos os dias.»
Talvez a jovem nos aponte o nó do problema da ascensão do nazismo quando escreve: «Que se tenha chegado a conceber o dever como uma coisa independente da consciência, independente da justiça, da bondade, da caridade, eis aí a prova da inanidade da nossa pretensa civilização. Os alemães, esses, há uma geração que se trabalha no seu reembrutecimento (é um retorno periódico). Neles toda a inteligência está morta. Mas podia esperar-se que, entre nós, isso fosse diferente.» Um último grito neste diário, ainda soltado em Paris: «Horror! Horror! Horror!». Depois, Auschwitz, Bergen-Belsen, mais uma morte entre milhões. Que horror, que horror sem fim…
Hélène Berr, «Diário», Dom Quixote, 2008, 244 páginas