António Rego Chaves
O búlgaro Tzvetan Todorov, linguista e teórico da narrativa de renome internacional, não se limitou nos últimos anos a escrever sobre problemas estritamente literários. Concentrou também a atenção, quer na história da cultura, quer na reflexão moral e política, com uma incidência muito especial no estudo do tema da liberdade. Neste contexto nos surge agora o ensaio «A Nova Desordem Mundial – Reflexões de um Europeu», obra que fez publicar na sua língua de adopção, a francesa, em 2003.
Diga-se desde já que um texto deste teor dificilmente resiste a três anos sem revisão, dadas as suas constantes referências a políticas nacionais e internacionais que todos os dias são susceptíveis de alguma evolução, não tanto no essencial, mas num sem-número de aspectos significativos. Ressalvada esta circunstância, o texto ainda hoje merece ser lido, devido à consistente integração histórica dos factos que analisa e ao seu interessante conteúdo programático.
Apenas um exemplo: talvez não fosse possível, em 2003, prever que o caos reinaria em 2006 no Afeganistão e no Iraque, como agora não é fácil imaginar o que ocorrerá de importante, nos próximos anos, no plano das relações directas ou indirectas – estas protagonizadas por Israel – entre os EUA e o Irão. Mas não há dúvida de que este tipo de problemas exige um acompanhamento diário por especialistas de geopolítica, a começar pelos que explanam as suas opiniões nos chamados «jornais de referência».
Que o mundo continua submetido ao arbítrio da hiperpotência liderada por Bush II, isso não mudou; que o «imperador» persiste em não se coibir de actuar de acordo com o que considera os interesses e a «segurança» do seu país, arvorando um sobranceiro desprezo pelo direito internacional e pela Organização das Nações Unidas, todos o sabemos; que as pretensas «causas» da Guerra do Iraque foram inventadas peça a peça por Washington, é asserção que já ninguém ousa contestar, nem mesmo os mais servis «satélites» dos EUA integrados na União Europeia e na NATO. Quanto à ONU, sabe-se como (não) funciona: o direito de veto outorgado aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança isenta-os das obrigações que pesam sobre os outros países, na medida em que detêm o poder de bloquear qualquer resolução que lhes diga respeito ou aos seus «amigos»: por essa razão, Israel, que sempre tem contado com o apoio incondicional dos EUA, nunca correu o menor risco de ser alvo de uma intervenção militar para evacuar Jerusalém-Leste e os territórios palestinianos ocupados em 1967, já lá vão quase 40 anos, durante a Guerra dos Seis Dias.
Proclamava-se em Portugal que tínhamos iniciado e concretizado os Descobrimentos com a finalidade de «dilatar a fé e o império», aliás com a bênção da Igreja Católica; hoje os EUA querem fazer passar uma imagem que não é muito dissemelhante, no Afeganistão, no Iraque ou no Irão, só que em vez de fé escrevem «liberdade» e em vez império falam de «democracia». Todorov cita Raymond Aron: «A linguagem sublime não chega para garantir o primado do Direito, antes assegura o da hipocrisia. Doravante os imperialistas apresentam-se mascarados e baptizam como libertação o que os homens de séculos passados designavam por opressão.»
Pergunta o intelectual búlgaro: «Podemos ver o triunfo da justiça na Comissão dos Direitos do Homem da ONU, que jamais procurou condenar pelas infracções cometidas contra os Direitos do Homem países como a China ou o Vietname, a Argélia ou a Síria, o Sudão ou o Zimbabué?» E acrescenta: «A ONU pode ser útil em todo o tipo de situações. Simplesmente, perante a guerra, estará sempre subjugada à vontade dos estados hegemónicos. A justiça internacional pode reforçar a força da lei, sobretudo se esta reger efectivamente as relações entre nações em lugar de se deixar embalar por ilusões universalistas. Porém, sendo a Humanidade o que é, a ordem internacional não poderá substituir-se à vontade dos estados e, logo, ao poder militar. As Nações Unidas jamais serão suficientes para impedir as agressões, assegurar a paz, impor a justiça. Para tal é necessária a força – e a força pertence aos estados. Torna-se, pois, inútil contrapor o Direito à força: como reconhecia já, tristemente, Pascal, sem a força o Direito é impotente.» Que fazer, então?
Para Tzvetan Todorov, «se a Europa quiser ter uma política autónoma e libertar-se da tutela, por vezes demasiado incómoda, dos Estados Unidos, tem de assegurar sozinha a sua defesa.» (…) «Só esta solução, enquanto resposta credível para os problemas da guerra e da paz no mundo, poderia desviar os Estados Unidos da tentação imperialista a que vêm sucumbindo.» O Velho Continente não estaria, portanto, condenado a optar entre imperialismo e impotência, mas tentaria ser uma «potência tranquila», sem a ambição de gerir os assuntos do mundo inteiro, isto é, comparável à Rússia e à China, mas não aos EUA, e encarados estes como seus parceiros militares privilegiados enquanto não enveredassem decididamente por uma via aventureira e revolucionária.
A possibilidade de uma defesa europeia comum e autónoma assentaria numa base sólida, os valores políticos europeus: racionalidade (contraposta ao obscurantismo, à superstição, ao pensamento mágico, à manipulação), justiça (tendo como consequência a solidariedade institucionalizada), democracia (que já não exclui senão os loucos, os criminosos e as crianças), liberdade individual (de credo, de opinião, de organizar a vida privada, de recusar que os estados coajam os indivíduos pela força), laicidade (incompatível com a teocracia e o totalitarismo), tolerância (pluralidade de costumes, de tradições, de maneiras de organizar o tempo e o espaço, público e privado, de grupos sociais, de profissões, de partidos). Como observa Jürgen Habermas, «o reconhecimento das diferenças – o reconhecimento mútuo do Outro na sua alteridade – pode também tornar-se marca de uma identidade comum». Utopia? Talvez. Mas que haverá de mais empolgante do que lutar por transformar um belo sonho em realidade?
Tzvetan Todorov, «A Nova Desordem Mundial», Asa, 2006, 80 páginas