António Rego Chaves
O terramoto de 1755 constituiu para Immanuel Kant (1724-1804) motivo de séria abordagem, não de um ponto de vista predominantemente filosófico, mas de uma perspectiva científica. Logo em 1756, três textos, agora reeditados em língua portuguesa com prefácio de Wolfgang Breidert e posfácio de João Duarte Fonseca, documentam esta preocupação do futuro autor da «Crítica da Razão Pura» (1781): «Acerca das causas dos tremores de terra, a propósito da calamidade que, perto do final do ano passado, atingiu a zona ocidental da Europa»; «História e descrição natural dos estranhos fenómenos relacionados com o terramoto que, no final do ano de 1755, abalou uma grande parte da Terra»; «Considerações adicionais acerca dos tremores de terra que, de há algum tempo a esta parte, se têm feito sentir».
Estranhar-se-á que estes curtos ensaios não contenham qualquer referência ao optimismo do Leibniz de «o melhor dos mundos possíveis» e ao do Alexander Pope do axioma «o que quer que exista é bom», como fez Voltaire, aliás de forma bem contundente, no seu «Poema sobre o Desastre de Lisboa», já apresentado nestas páginas. Mas o que interessava a Kant não era centrar a sua atenção e dos seu leitores nos pretensos desígnios da Providência geral ou particular, mas compreender, à luz das ciências naturais, as causas do terramoto ocorrido em Lisboa a 1 de Novembro de 1755, Dia de Todos os Santos, que hoje se sabe ter tido uma intensidade muito próxima dos 8,5 graus da escala de Richter, provocando cerca de 30 mil mortos.
Educado num rígido ambiente religioso de orientação pietista, mas acusado de contrariar o «Génesis» com a malograda tese de «Magister» que intitulou «Reflexões sobre a Maneira de Calcular as Forças Vivas» (1749), Immanuel Kant estava longe de considerar a catástrofe um castigo de Deus provocado pelos pecados dos homens, como o inflamado pregador jesuíta italiano Gabriel Malagrida, mais tarde condenado e executado no âmbito do processo dos Távoras. Impossível neste contexto não recordar a frase de Voltaire – cujas obras, aliás como as de Rousseau, Diderot, Bayle, La Mettrie, Espinosa, Hobbes ou Locke foram proibidas em Portugal, primeiro pela Inquisição e, depois, pela Real Mesa Censória –, referindo-se ao suplício do sacerdote, que após o terramoto ameaçara a população da capital portuguesa com mais castigos divinos e propusera a reforma dos costumes para apaziguar a ira de Deus: «Assim, o excesso do ridículo se juntou ao excesso do horror.» Lembra Veríssimo Serrão: «O ano de 1761 marca a grande viragem, com o auto-de-fé de 21 de Setembro em que morreu o jesuíta Gabriel Malagrida, vítima do ódio que lhe moveu o Marquês de Pombal, e foi queimado em estátua o Cavaleiro de Oliveira por ter composto o “Discours Pathétique” sobre o terramoto de 1755.» E pergunta Aquilino Ribeiro: «Para cohonestar a execução do fanático Malagrida, amotinador das turbas contra César em nome de Deus, que melhor do que condenar um pensador da vanguarda?!»
Pretenderia Kant extrair uma lição filosófica do terramoto? Eis as suas palavras: «A meditação sobre estes funestos acidentes é plena de ensinamentos. Constitui uma humilhação para o homem na medida em que o faz ver que não tem qualquer direito ou, pelo menos, se o tinha, já o perdeu, a esperar das leis da Natureza, decretadas por Deus, consequências puramente benéficas; e talvez por essa via o leve igualmente a compreender que esta arena de desejos não pode ser a derradeira meta de todas as suas aspirações.» Considerando que «é o homem que tem de aprender a adaptar-se à Natureza», embora pretenda «que seja ela a adaptar-se a ele», recusa-se, no entanto, a considerar as catástrofes naturais como castigos divinos, «infligidos às cidades dizimadas em virtude das más acções por elas cometidas». «Este tipo de juízo é de uma imperdoável petulância» – garante o filósofo – «pois arroga-se a capacidade de decifrar e interpretar a seu modo os desígnios da divindade. O homem tem, na verdade, tamanha presunção que, pura e simplesmente, se julga o objectivo único das acções de Deus, como se estas não pudessem ter outro fim em vista senão ele, e todas as medidas para governo do mundo se devessem regular pelos seus interesses.»
João Duarte Fonseca conclui que, «se as noções sismológicas de Kant foram afectadas pelas vicissitudes do processo científico, há que reconhecer, por outro lado, a actualidade das recomendações do filósofo quanto às regras de coexistência com os fenómenos sísmicos. «Em oposição à campanha culpabilizadora levada a cabo pela Igreja, Kant oferece o bálsamo para o sofrimento humano causado pelo cataclismo: “E assim se encontra o Homem nas trevas quando pretende adivinhar os objectivos que Deus terá em vista no governo do mundo. Mas já não há que ter incertezas quando se trata da forma como nos deveríamos adaptar aos caminhos da Providência, em conformidade com os fins por ela visados. O Homem não nasceu para construir cabanas eternas neste palco de vaidades”». Que fazer, então? Porque não dar os primeiros passos na prevenção dos efeitos dos terramotos, escolhendo materiais de construção que não esmaguem os seus moradores, «como fazem os peruanos que vivem em casas que só têm paredes no rés-do-chão e o resto é feito de cana»?
É conhecida a resposta de Kant à pergunta: «Que é o Iluminismo?»: «Tem a coragem de te servir do teu próprio entendimento. Eis a divisa do Iluminismo.» O homem autónomo assume o seu destino na Terra como se não houvesse paraíso, pecado original, queda, providência divina, salvação. Um rude destino solitário, mas solidário com todos os cidadãos do mundo vítimas de uma Natureza incontrolada e, talvez, incontrolável. Voltaire preconizava: «cultiva o teu jardim», isto é, deixa de especular sobre a metafísica do Mal e procura pôr fim a todos os males que conheces. Enfim, actua como se ninguém, além do homem, pudesse ajudar o homem no seu sofrimento. Não se encontrava, na época do terramoto, muito longe do filósofo de Königsberg…
Immanuel Kant, «Escritos sobre o Terramoto de Lisboa», Edições Almedina, 2005, 137 páginas