António Rego Chaves
Percorremos esta laboriosa recolha de textos, organizada e apresentada por Joel Serrão e levada a cabo por Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, ora ofuscados pelo inegável cintilação da prosa, ora perplexos pelo teor de algumas conclusões «científicas» do aprendiz de sociólogo Fernando Pessoa. Na verdade, o autor não poucas vezes se contradiz, não poucas vezes se retracta, não poucas vezes resvala para um mero jogo de palavras em que as subtilezas do pensar vão acumulando sucessivos paradoxos.
Para Fernando Pessoa, «vence sempre aquele partido que representa a força em determinado momento». Assim teria acontecido, portanto, seja em 5 de Outubro de 1910, seja com Pimenta de Castro em 1914, seja com Sidónio Paes em 1917, seja com a Ditadura Militar em 28 de Maio de1926. E, ao contrário do que sucedeu com os democráticos Afonso Costa, Bernardino Machado ou António José de Almeida, seriam os aspirantes a ditadores que viriam a fascinar o poeta: Pimenta de Castro, Sidónio, o Salazar financista.
Como salienta Joel Serrão, «Pessoa mostrou-se convicto de que a evolução do processo republicano exigiria a intervenção de ‘um Cromwell vindouro’. Depois, sempre considerou com favorável atenção, como quem espera que o devir das coisas comprove uma hipótese, as soluções de força que, ciclicamente, foram surgindo e se ampliando até porem termo à Primeira República.» Um título como «O Interregno – Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal», datado de 1928, fala, aliás, por si, e exprime, porventura, o que a «maioria silenciosa» de então entendia como sendo evidente e inadiável, a saber, que não havia «outro caminho para a salvação e renascimento do País senão a ditadura militar».
Um preconceito acerca da República ressalta destes textos: o de que ela teria constituído uma desnacionalização ou «estrangeiramento» da nossa política, da nossa administração, da nossa cultura. Mas o diligente aprendiz de sociólogo não se fica por aqui, aventura-se na zona escorregadia da luta de classes, sentencia: «Uma demagogia é um governo apoiado em forças (ou classes) populares e sistematicamente dirigido contra as opiniões, as tradições e os interesses das classes médias.» (…) «Tudo quanto seja feito sistematicamente contra as classes médias é feito sistematicamente contra a Pátria.» Ao contrário do que teria aconselhado Amílcar Cabral, Fernando Pessoa não estava disposto a «suicidar-se» enquanto membro de uma classe relativamente privilegiada. Muito pelo contrário, proclamava na sua mensagem «urbi et orbi»: «Enquanto houver capital – e há-de haver sempre – toda a lei feita contra o capital há-de redundar em contra o trabalho. Capital e trabalho estão ligados; quem ataca um, julgando favorecer o outro, faz mal a ambos, porque o faz a um e esse está ligado ao outro.» Era já uma ideologia corporativista quase bem definida, não era, mesmo?
Haveria solução viável? É bem certo que sim: «…deve a República Nova passar a governar por meio de classes até ali não experimentadas como governantes, exército, comerciantes e industriais, classes extra-políticas.» Que seria isso de «classes extra-políticas»? Forças ausentes da política portuguesa, bandos de excursionistas marcianos? Nada disso: «católicos oprimidos», «classes médias atacadas», «cidadãos pacíficos assaltados nas ruas». Linguajar no mínimo oportunista, típico do discurso reaccionário.
Não se lhe pode aceitar a seguinte graçola: «Entre um operário e um macaco há menos diferença que entre um operário e um homem realmente culto.» Não se lhe pode aceitar negligentes «literatices» como esta: «Que me importam a mim os homens/ E os que supõem que sofrem?». Não se lhe pode aceitar a «fukuyamada» de considerar o capitalismo «o estado natural (e definitivo) das sociedades evoluídas.» Não se lhe pode aceitar que tenha tomado um Pimenta de Castro, um Sidónio Paes, um Salazar, por D. Sebastião. Não se lhe pode aceitar as frivolidades contra o anarquismo, o socialismo, o comunismo. Apenas se pode entender, tal com Joel Serrão entendeu, «a sua infernal solidão em busca de palavras, palavras, palavras».
Era genial o poeta Fernando Pessoa. Talvez por isso ou também por isso, o futuro deu-lhe o direito de muito pensar por nós, de muito falar por nós, de muito escrever por nós. Talvez por isso ou também por isso, tenha zurzido a «choldra franquista» (a do ditador João Franco) e os seus sucessores republicanos e ninguém se tenha atrevido a contestá-lo, com cabeça, tronco e membros, a ele que fingira não conhecer «quem tivesse levado porrada». Talvez por isso ou também por isso, a muitos foi dando «porrada»: a Basílio Teles, a Machado Santos, a Sampaio Bruno, mas, acima de todos, a Afonso Costa, a quem de tudo insultou para, depois, num gesto nobre, sem que nada nem ninguém o forçasse a isso, se retractar. Talvez por isso ou também por isso, se permitiu deixar à posteridade, preto no branco, esta brutal caracterização «científica»: «Os nossos políticos não são gente. Nenhum deles mostra ter tido na sua vida uma daquelas crises espirituais donde se emerge, talvez ferido para sempre mas psiquicamente homem, personalidade espiritual. São ateus pela mesma razão que o é um burro ou uma árvore.» (…) «São vazios e estúpidos. Só sabem comer e manobrar para comer. A ignóbil figura de D. Carlos I, que o Diabo guarde, é ainda o símbolo de Portugal.» Talvez por isso ou também por isso, enfim, nos incitasse, como que resignado perante o «fait accompli», a abandonar toda a esperança, renunciando a contestar «a ordem estabelecida»: «Defendamos a República sem ser por qualquer espécie de republicanismo. Defendamo-la como correspondendo ao ‘facto’, por oposição tanto ao ‘direito’ como à ‘teoria’. Mas tenhamos consciência – e tenham-na os governantes – de que é por isto que a devemos defender e manter.» Ou seja: talvez fosse, à sua despegada maneira e por força da inércia, republicano – «ma non troppo».
Fernando Pessoa, «Da República», Ática, 1979, 451 páginas