António Rego Chaves
Paul Verlaine (1844-1896) não foi apenas, como acentuou Remy de Gourmont, um poeta de inspiração religiosa ou libertina. Revelou-se também, como demonstra «Mes Prisons», pequena obra de carácter autobiográfico, o que os juristas chamariam um «delinquente habitual». Bêbedo, arruaceiro, agressor contumaz da mulher e da mãe, autor de uma tentativa de assassínio do seu genial amigo e amante Jean-Arthur Rimbaud, passou alguns períodos relativamente extensos encarcerado, o mais longo dos quais entre 1873 e 1875, depois de ter disparado em Bruxelas dois tiros de revólver contra o poeta de «Une Saison en Enfer» («Uma Cerveja no Inferno», na segunda tradução portuguesa de Mário Cesariny).
Dessas experiências, tal como das longas hospitalizações nos últimos anos de vida, Verlaine não guardou apenas uma memória amarga. Pouco dada a jeremiadas, a sua prosa inclina-se mais para a reportagem tanto quanto possível «objectiva» dos factos e dos acontecimentos – passem-se eles seja onde for, no interior ou no exterior de si próprio – do que a penosos actos de contrição pelos delitos cometidos ou a melancólicas especulações sobre a iminência da morte. Vai mais longe, aliás: entre 1873 e 1875, transforma a sua privação de liberdade num pretexto para ler (todo o Shakespeare, Racine, Fénelon, La Fontaine, Corneille, Victor Hugo, Lamartine, Musset), para escrever (a sua «Arte Poética», por exemplo) e, até, para se converter ao catolicismo. Nessa ocasião, as leituras estendem-se aos oito volumes do «Catecismo de Perseverança» de Jean-Joseph Gaume, a Joseph de Maistre, a Auguste Nicolas.
Ei-lo a narrar a sua «conversão»: «As provas, muito medíocres, apresentadas por monsenhor Gaume em favor da existência de Deus e da imortalidade da alma agradaram-me pouco e não me converteram mesmo nada, confesso, apesar dos esforços do capelão para as corroborar com os seus melhores e mais cordiais comentários.» Mas o sacerdote não desiste e aconselha-o: «Salte os capítulos e passe imediatamente ao sacramento da Eucaristia.» Ora, Verlaine encontra-se então num deplorável estado de angústia: acaba de lhe ser anunciada a decisão judicial de «separação de pessoas e bens» requerida pela mulher, Mathilde, teme que não lhe seja permitido voltar a ver o filho, apenas a mãe – com a qual mantém uma ambígua relação de amor-ódio – o visita no presídio. E, apesar da «arte deplorável» e da «sintaxe moribunda» do referido «Catecismo», acaba por ajoelhar-se, lavado em lágrimas, aos pés do crucifixo da sua cela de prisão, como que de súbito «iluminado» pela fé. Escreve Jérôme Solal: «A conversão ao catolicismo surge imediatamente como um amor substitutivo que alivia a ausência. De resto, Verlaine vai dilapidar esse tesouro de afeição espiritual nos sabores do álcool, na seiva da sensualidade. O “recto caminho” é para ele um voto piedoso, uma mania intermitente. Paralelamente, o diabo não desarma.» O «fauno», o «degenerado», o «Sócrates etílico» que nele habitam nunca se darão por vencidos na sua luta permanente contra a castidade, a pureza, a severa austeridade dos pensamentos, das palavras, dos actos.
Pela primeira vez em adulto, confessa-se: «actos sensuais», «actos de cólera», «actos de intemperança», «pequenas mentiras», «vagos e como que inconscientes enganos» – mas, em primeiro lugar e sobretudo, os já citados e sabe-se lá quantos e quão deliciosos «actos sensuais» envolvendo tanto homens como mulheres…
Ainda na prisão, lerá Santo Agostinho – mas não renunciará a Vergílio.
Solto a 16 de Janeiro de 1875, atravessa um período de relativa acalmia. Em 1878 apaixona-se por um seu aluno, Lucien Létinois, com quem vive uma relação que tem algo de paternal até à morte do jovem, cinco anos depois, vítima de febre tifóide. Em 1885 regressa à prisão, por ter batido e ameaçado de morte sua mãe, com quem habitava na altura. Nova libertação, nova detenção poucas horas depois: embebedara-se, provocara escândalo, fora conduzido à esquadra de polícia mais próxima. Na manhã seguinte, já longe dos vapores do absinto, a «fada verde», voltará a ser um cidadão francês na plena posse das suas faculdades mentais e dos seus direitos.
Precocemente envelhecido, resta-lhe ainda percorrer um longo calvário: paixões não correspondidas, reumatismo, diabetes, sífilis, cirrose, sucessivas estadas durante mais de três anos em asilos e hospitais, extrema pobreza. A 7 de Janeiro de 1896, manda chamar um padre e confessa-se pela última vez. Morre no dia seguinte, ainda com 51 anos. «Príncipe dos Poetas» desde 1894, o seu funeral é acompanhado, em Paris, por milhares de pessoas, algumas das quais, como Maurice Barrès ou Robert de Montesquiou, lhe tinham assegurado uma pensão mensal de 150 francos – «esmola» que lhe atenuaria a miséria, mas não a mágoa de amar sem ser amado. Mallarmé prefaciará todos os epitáfios possíveis, sem sombra de retórica, pesando cada uma das suas palavras: «Ele não se escondeu do destino.»
Paul Verlaine, «Mes Prisons», Éditions Mille et une Nuits, 2003, 110 páginas