António Rego Chaves
Eduardo Abranches Soveral, num texto que consagrou a Agostinho da Silva, chamou a atenção para o facto de o pensador cujo centenário do nascimento se está a comemorar em 2006 ter sido um fecundo biógrafo. De facto, debruçou-se sobre o percurso das mais diversas individualidades, entre as quais Francisco de Assis, Zola, Pasteur, Lincoln, Moisés, Washington, Robert Owen, Franklin, Miguel Ângelo, Lamennais, Leopardi, Leonardo ou William Penn. Salientava o ensaísta «a excepcional beleza dos textos», acrescentando que «dificilmente a sua expressividade, directa, simples, luminosa, poderá ser ultrapassada». E concluía: «Um último aspecto a ter presente (…) é que a viva e intensa ressurreição que faz dos biografados e das ocorrências mais determinantes da sua história pessoal, ele tem o condão de a situar no contexto das situações existenciais típicas que mais próximas lhes são».
Já em 1938, como relevou Helena Maria Briosa e Mota na introdução aos três volumes das biografias acima citadas e reeditadas pela Âncora em 2003, Agostinho da Silva sustentava que a literatura deveria «levantar os portugueses ao nível necessário para que a revolução cultural e política se firmasse e pudesse avançar». E, em entrevista de 1944 a Irene Lisboa, alertava: «Eu quis, acima de tudo, dar à evidência a feição combativa e vitoriosa de certas vidas. Mostrar ao homem de hoje, que vacila ou que procura orientação, as directrizes de alguns dos seus predecessores.» Um feliz acaso fez-nos deparar, há dias, com a primeira edição da «Vida de Lamennais». Deste texto magnífico aqui vos damos conta, quer em homenagem ao biógrafo quer ao biografado.
Hugues Félicité Robert de Lamennais (1782-1854) cedo compreendeu que a Revolução Francesa «apenas servira para levar ao poder uma burguesia insolente que falava muito de liberalismo e apenas o praticava na medida em que podia ser útil aos seus interesses; reconhecia os defeitos do aristocrata, mas o burguês aparecia-lhe como um ser em quem a todos esses defeitos se tinham juntado os da ganância, da incultura, do egoísmo estreito». Quando jovem, só uma instituição se lhe afigurava apta a infundir elevação espiritual aos governantes, a Igreja Católica, que poderia conduzir os detentores do mando a trabalhar com amor e caridade. Recebe as ordens menores em 1809 e em 1816 é sacerdote. Em 1817 publica o primeiro tomo do «Ensaio sobre a Indiferença em Matéria de Religião», no qual reafirma que apenas a sua Igreja pode salvar o mundo. Atacado por liberais, defendido por realistas e ultramontanos, logo causa alguma desconfiança entre a hierarquia eclesiástica: pois não seria temerário, mal digerida ainda a dura lição de 1789, advogar a subordinação do poder temporal ao poder espiritual, ameaçando de morte o precário equilíbrio entre o Estado e a Igreja?
Não tardou a tornar-se evidente que a pretensão de Lamennais e dos seus apoiantes, padres ou leigos, «um governo para o povo inspirado por uma alta autoridade espiritual», jamais teria o aval do Papa. O bispo de Paris acusa-o de querer destruir a ordem sagrada que Jesus Cristo instituíra na Terra, considerando que «toda a tentativa de abater a barreira entre pobres e ricos, entre senhores e escravos, entre homens que têm direitos e homens que têm deveres, era um acto ímpio que o inferno castigaria depois da morte, mas pelo qual Lamennais teria de responder também durante a vida». Gregório XVI condená-lo-ia, primeiro, em 1832, com a encíclica «Mirari vos», na qual fulminava «a execrável doutrina da liberdade de consciência, a não menos funesta pretensão de liberdade de imprensa e todas as teorias que tendiam a abalar o poder dos príncipes temporais»; depois, em 1834, com a «Singulari nos», logo após a saída da primeira edição das «Palavras de um Crente», livro que teria uma edição de cem mil exemplares e seria entusiasticamente lido ou ouvido ler pelo povo francês, a começar pelos tipógrafos que compuseram as suas incendiárias páginas. Escreve Agostinho da Silva que esta obra capital constituía «uma renovação do Evangelho e um apelo aos homens para que finalmente o instaurassem na prática, para que desaparecessem de vez a miséria material do pobre e a miséria moral do rico, para que um outro paraíso se abrisse a todos, sem distinção de condenados e de eleitos».
Era tão simples quanto imperdoável o «crime» de Lamennais: queria ajudar a construir um mundo novo, sustentando que «no catolicismo todo o cristianismo morrera, vítima das ambições e dos erros; agora a sua Igreja era o Povo; dos cristos de madeira preciosa pregados em cruzes de oiro, que adoravam os cardeais e os bispos e os governantes sem fé, passara ao Cristo vivo que, sofrendo, sangrento, esmagado pelo ódio dos poderosos, ainda prometia aos homens o seu Reino de Deus, a sua sociedade nova de cooperação, de abundância e de amor».
Acabaria por afirmar que a Igreja de Roma, «aliada dos príncipes e inimiga dos povos», se tinha constituído, «não para propagar e defender as doutrinas de Cristo, mas para as abafar, para não deixar que elas tivessem as consequências sociais que lhes estão implícitas». Apelaria para a união dos oprimidos e explorados de todas as nações, zurziria a casta dos políticos e a plutocracia liberal, denunciaria a liberdade em França como uma mentira assente na exploração de milhões de escravos por meia dúzia de senhores que lhes negavam até os meios de cultura e o mínimo de dinheiro que os deixaria pensar em problemas que não fossem os da vida imediata. E avisaria os conservadores de que corriam o risco de enfrentar uma violenta revolução social. Esperavam-no múltiplas humilhações, dificuldades financeiras, um ano de prisão, a apreensão e a destruição de «O País e o Governo». Entrou na Constituinte como deputado – aliás sem grandes ilusões –, com a Revolução de 1848. Seria enterrado no Père-Lachaise, em vala comum, entre cargas policiais lançadas sobre uma multidão de dignos cristãos que cantava em coro A Marselhesa. Fora um apóstolo no século XIX.
Agostinho da Silva, «Vida de Lamennais», Edição do Autor, 1943, 109 páginas