António Rego Chaves
Na altura em que tantos milhões de espectadores se preparam, por esse mundo fora, para seguir pela televisão os Jogos Olímpicos de Pequim, «L’Histoire» entrega-nos um «dossier» por vezes surpreendente sobre os antigos «concursos» de Olímpia, o seu «renascimento», em 1896, pela mão de Pierre de Coubertin, e o «século de ferro». Abandonemos desde já qualquer piedosa mitologia do «ideal olímpico»: factos são factos – e as boas intenções ocupam apenas um espaço ínfimo na sua explicação.
Espelhos do mundo – salienta Pap Ndyaye –, os Jogos, apesar do seu etéreo ideal de neutralidade, sempre foram marcados pelas batalhas políticas suas coetâneas. Hoje é o caso do Tibete, como antes estiveram em causa racismos múltiplos ou diversas crispações da «guerra fria». Sem esquecer que a moderna marginalização dos profissionais teve como pano de fundo a óptica de uma classe privilegiada que se podia dar ao luxo de encarar o desporto como passatempo não remunerado, mantendo à margem da competição não apenas os pobres, como os «povos primitivos», os negros e, até 1928, as mulheres. Escândalo dos escândalos, em 1968, no México, os atletas negros norte-americanos Tommie Smith e John Carlos erguem no pódio, contra a segregação racial, os seus punhos cobertos por luvas pretas, no momento em que começa a ser tocado o hino do seu país, os Estados Unidos – e verão por isso as suas carreiras definitivamente encerradas pelo Comité Olímpico Internacional (COI).
Os «concursos» iniciados em Olímpia cerca de 776 a. C. começaram por ser uma ocupação de aristocratas gregos. Uma simples coroa de oliveira premiava o vencedor, mas, pouco a pouco, entrariam em cena os profissionais que iriam ser generosamente pagos pelos seus feitos atléticos, transformando-se alguns deles em cidadãos ricos, invejados e poderosos. O pio imperador Teodósio proíbe as competições em 393: triunfante em Roma, o cristianismo não tolera o «paganismo» importado da Grécia.
Será, no entanto, Atenas que, em 1896, graças a Pierre de Coubertin, organizará os primeiros Jogos da nova era olímpica. Seguir-se-lhe-ão Paris (1900), St. Louis (1904), Londres (1908), Estocolmo (1912), Anvers (1920), Paris (1924), Amesterdão (1928) e Los Angeles (1932), sempre sob o signo do choque entre o ideal internacionalista e o «nacionalismo real», fosse ele dos checos, dos eslovacos, dos húngaros, dos finlandeses ou dos polacos, da França, da Alemanha, da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos. Mas é em 1936 que o negro Jesse Owens, ao conquistar em Berlim quatro medalhas de ouro (100 e 200 metros, 4x100 metros e salto em comprimento) mostra a Hitler que a «raça ariana» não é afinal tão «superior» quanto a propaganda do ditador, com a complacência do COI e do racista seu futuro presidente, Avery Brundage, proclamava. Fez notar o historiador Pierre Milza que a ascensão dos nacionalismos, na sua versão imperialista e agressiva, tal como um darwinismo social e racial exaltando a força, a virilidade, a superação de si, a competição a todo o transe e o culto do herói, foram os «valores» que o desporto duradouramente assumiu na charneira entre o século XIX e o século XX. Duradouramente, é bem certo, mas até quando?
Em Londres (1948) os vencidos da Guerra Mundial serão mais uma vez excluídos dos Jogos. Quatro anos depois, em Helsínquia, o fundista checo Emil Zatopek, «a locomotiva de Praga», obtém três medalhas de ouro, enquanto os ginastas soviéticos vencem a esmagadora maioria das provas da sua especialidade. Era a primeira participação da URSS nos Jogos, num momento em que a tensão entre as duas superpotências parecia perto do cume. A seguir, em Melbourne (1956), Países Baixos, Suiça e Espanha boicotam a competição, como protesto contra o esmagamento da insurreição húngara pela União Soviética. Em Roma (1960) os representantes de Taiwan, obrigados a desfilar atrás de um cartaz com a inscrição «Formosa», mostram finalmente as suas próprias cores, ao passo que, em Tóquio (1964), o Japão ressurge aos olhos do mundo como grande potência asiática. No México (1968) as provas serão manchadas pela chacina de centenas de estudantes, ao passo que em Munique (1972) um comando palestiniano sequestra atletas israelitas, que acabarão por perecer durante o assalto da polícia alemã. Em 1976 (Montreal) 29 estados africanos retiram as suas delegações, depois do COI se recusar a excluir a Nova Zelândia, que mantinha relações desportivas com a África do Sul. 1980 assiste ao boicote dos Jogos de Moscovo por 58 países, entre os quais os EUA, em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão. Ripostando, quatro anos passados, a URSS boicota, seguida por 17 aliados, a competição em Los Angeles. Em Seul (1988) a «ameaça» da Coreia do Norte e da extrema-esquerda japonesa servem de pretexto para uma asfixiante vigilância policial. Barcelona (1992) saúda a presença de uma África do Sul enfim livre do «apartheid». Em 1996 (Atlanta) uma bomba causa dois mortos e uma centena de feridos durante um concerto de rock. No último ano do século XX, em Sidney, quatro atletas de Timor-Leste participam nos Jogos a título individual. Em 2004, a brutal ditadura chinesa confirma em Atenas a ambição de organizar os Jogos de 2008.
Hoje, os «Repórteres sem Fronteiras» apelam para o boicote das Olimpíadas, pelo menos da cerimónia de abertura, como protesto contra a repressão no Tibete. O historiador Patrick Clastres explica assim a generalizada benevolência para com Pequim: «É uma opção que responde ao facto de a maior parte dos parceiros económicos e dos países membros do COI investirem hoje muito na China que, além do mais, lhes oferece garantias financeiras. Resta um longo caminho a percorrer até que o COI se transforme em instância democrática e faça a promoção dos direitos do homem. Para isso seria necessário que o COI modificasse o seu modo de recrutamento, desse lugar aos processos electivos e que inscrevesse na sua carta a referência aos direitos do homem. O ano dos Jogos de Pequim 2008 corresponde ao 60.º aniversário da Declaração dos Direitos do Homem!» Fica tudo mais claro…
«Les Collections de l’Histoire», Julho de 2008, 98 páginas