Um humanismo de aristocrata (Aristóteles)

António Rego Chaves

A nossa cultura possui inimagináveis peculiaridades: só agora, em 2004 – isto é, dois mil, trezentos e vinte e seis anos depois da morte de Aristóteles –, a «Ética a Nicómaco», uma das obras fundamentais do celebérrimo filósofo grego nascido em Estagira (Macedónia), foi directamente traduzida do original para a língua portuguesa. A já inesperada pedrada no charco fica a dever-se ao professor universitário António C. Caeiro, reconhecido especialista de Filosofia Antiga – que também se deu ao cuidado de apresentar e anotar o texto –, e à editora Quetzal.

O livro afasta-se sem equívocos do idealismo platónico ensinado na Academia de Atenas, apoiando-se em dados concretos do senso comum e fundamentando as suas conclusões na experiência. O Estagirita estabelece que toda a actividade humana, teórica ou prática, tem por fim o bem. Sendo opinião unânime que o bem supremo é a felicidade, resta saber como encontrá-la: numa existência centrada nos prazeres primários, na acção política, na vida contemplativa? Aristóteles tentará conciliar as exigências espiritualistas com as eudemonistas, sustentando que estas últimas encontram a felicidade tanto no prazer como na prática social. Considera que, das virtudes ou excelências humanas, umas, as teóricas ou dianoéticas, ou seja, a arte ou perícia, a ciência, a prudência ou sensatez, a sabedoria e a inteligência, são próprias da actividade racional e podem ser desenvolvidas por meio da instrução; quanto às outras, as éticas ou do carácter, como a generosidade e a temperança, resultam da educação nos bons hábitos, pois nenhuma das virtudes ou excelências morais surge à nascença em nós. Mas tanto a instrução como a educação não fazem mais do que aperfeiçoar as chamadas «virtudes naturais», que nos predispõem à prática das verdadeiras virtudes. Se nascemos indignados poderemos tornar-nos justos, se nascemos pudicos poderemos moderar os nossos ímpetos, se nascemos coléricos poderemos transformar-nos em homens corajosos. Nada a fazer, contudo, se não fazemos parte da «elite» que foi dada à luz sendo já portadora daquelas «virtudes naturais» que constituem uma condição necessária – mas decerto não suficiente –, da prática das verdadeiras virtudes.

A virtude ética não é nem paixão nem faculdade da alma, mas um hábito ou disposição, um facto que se compõe de dois elementos: o voluntário, que escolhe o fim a atingir, e o intelectual, que determina os meios para atingir esse mesmo fim. «A virtude é um hábito, uma qualidade que depende da nossa vontade. Ela está situada no meio e é definida relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual também o sensato a definirá para si próprio. A virtude é um meio entre dois vícios: o do excesso e o do defeito. Não há no excesso nem no defeito posição intermédia, tal como o justo meio não admite nem excesso nem defeito.»

Aristóteles sustenta que a actividade ética tem o seu domínio de aplicação especialmente na vida política, motivo pelo qual esta deve ser estudada com uma particular atenção. Sendo um ser sociável, o indivíduo só em comunidade poderá transformar em acto a felicidade e a virtude, pois existe plena harmonia entre os interesses da cidade e os do cidadão. Daí a sua célebre afirmação segundo a qual «o homem é um animal político». No entanto, o fundador da escola do Liceu não deixará de sublinhar que ninguém pode encontrar o seu soberano bem senão no pensamento e na contemplação puros – incoerência já assinalada por numerosos especialistas da sua filosofia. E acrescenta, dissipando eventuais dúvidas acerca da presença de uma indelével tentação solipsista no seu pensamento: «em nossa opinião, o verdadeiro bem é individual e impossível de retirar ao seu possuidor.»

Émile Boutroux lança alguma luz sobre esta contradição: «A sabedoria helénica desenvolveu-se num meio muito cultivado, num mundo de gente sensata, feliz, privilegiada, tal como eram os homens livres das cidades gregas. (…) A moral grega é uma moral aristocrática; é portanto uma moral que não é conveniente senão para um pequeno número.» E Jean Voilquin comenta: «Aristóteles não pretende estabelecer regras para as crianças, os escravos, os operários manuais. Ele não se dirige senão a homens livres, reflectidos, que fizeram da prática das virtudes um hábito consciente, a todos aqueles que são dotados de uma razão activa.»

Em relação à escravatura, a posição do filósofo é, aliás, vincadamente ideológica e bem reveladora dos conceitos de justiça política e justiça doméstica vigentes na sociedade ateniense do século IV AC: «O direito do senhor em relação aos seus escravos e do pai em relação aos seus filhos não se confundem com a tirania, mas são-lhe semelhantes. Com efeito, não se comete uma injustiça em relação àquilo que vos pertence absolutamente, como é o caso do escravo, que é vossa propriedade, e do filho, pelo menos até que ele atinja uma certa idade e tenha deixado o domicílio paterno.» Em boa verdade, o Estagirita não reconhece no escravo uma autêntica pessoa – apenas «uma propriedade instrumental provida de alma». A «vida do espírito», a atitude «contemplativa» ou «teorética», o exercício do «puro pensamento», seriam domínios reservados ao homem livre e encontrar-se-iam, portanto, liminarmente vedados ao escravo. O humanismo aristotélico está longe de ser um humanismo do trabalho, pois aplica-se apenas a alguns privilegiados – nunca aos humilhados «instrumentos com alma» que, na sua época, constituem mais de um terço da população ateniense. Como salienta Otfried Höffe, o filósofo não se inibe de justificar as desigualdades na Grécia Antiga, com especial relevo para as ausências de direitos dos escravos, das mulheres e das crianças. Aliás, os ócios e os negócios dos exploradores, como é bem sabido, dependiam então quase exclusivamente da desenfreada exploração das vítimas do esclavagismo, considerado indispensável ao são funcionamento da economia. Aristóteles afirmava, mesmo, que «todos os seres, desde o primeiro instante do seu nascimento, são por assim dizer marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer». Os «escravos» foram muitas vezes capazes de o desmentir – mas é bem certo que, com demasiada frequência, não têm logrado vencer o seu «destino».

Aristóteles, «Ética a Nicómaco», Quetzal Editores, 2004, 282 páginas