António Rego Chaves
«Quando o dedo aponta para a Lua, o tolo olha para o dedo». Pode recordar-se este celebérrimo provérbio chinês quando se vê a capa do presente número da revista «Le Magazine Littéraire». De facto, o dedo é o romance policial («le polar»), mas a Lua está mais abaixo, à esquerda, com uma vinheta d’«Il Quarto Stato» (1901), quadro do pintor italiano Giuseppe Pellizza da Volpedo. Diz a «Lua», em francês: «Todos burgueses? 150 anos depois d’ ‘Os Miseráveis’, quem fala ainda em nome do povo?»
Esqueçamos a eventual importância cultural, sociológica, económica ou política do romance policial. Finalmente, uma pedrada no charco da nossa compostura do «faz-de-conta-que-tudo-está-bem-assim-e-não-é- preciso-agitar-as-águas-e-acrescentar-nada-ao-que-disse-o-orador-precedente»?
O romance policial terá todos os direitos – incluindo o de se guindar a «tema de capa» desta prestigiada instituição em que se tornou «Le Magazine Littéraire» e o de ser mais lido do que Homero, Dante ou Milton. Mas, mesmo com férias à vista, e para quem quer descansar ao sol lendo «policiais», parece que não se justificaria tanto alarde (trinta e oito páginas) para tão chico recado dentro. «Le Magazine Littéraire decerto sabe melhor que ninguém quem são os seus leitores, como ampliar o seu número e que o faz correr: mas aqui fica o reparo, que ninguém verá para lá dos Pirenéus.
Patrice Bollon, excelente jornalista da área cultural, embora dispondo de um curto espaço de dez páginas salpicadas de anúncios, move-se com brilho no terreno que domina: «Enquanto tudo não é senão desemprego, dificuldades materiais, medo do futuro, os romances actuais parecem quase todos desenrolar-se – quando o mundo exterior se digna aparecer, o que nem sempre sucede –, senão nos bairros chiques com elegantes casas design, pelo menos em interessantes distritos burgueses e boémios, com dinheiro à descrição, já que nunca evocam o efeito de uma sua possível carência, e com angústias, claro, mesmo dramáticas, mas puramente ‘existenciais’.» Será um tanto cáustico, mas, «olhando a Lua», justo q.b.
Quanto à esfera do ensaio o clima seria um tanto diverso, mas nem por isso menos viciado pelo mal do «universalismo atemporal»: «Não há classes sociais, mas apenas (e ainda) ‘categorias’. Como se o mesmo pensamento valesse por definição para todos, ricos ou pobres, operários, empregados de escritório ou membros de vários conselhos de administração.»
No país de Balzac, Victor Hugo e Zola, onde tempos houve em que nenhum autor se poderia arrogar o direito de ignorar a existência do povo, brada aos céus a «distracção» da quase totalidade dos romancistas de hoje: será que o povo já não existe? A pergunta não é retórica, porque o povo, enquanto arraia-miúda, em oposição à aristocracia, aos «patrícios», bem poderia e deveria ter deixado de existir; mas, como bem sabemos, a «plebe» continua a viver ou sobreviver em condições por vezes deploráveis e cada vez são menos os que nos dão conta, em obras de «ficção», da actual «condição proletária» (que abrange operários e ex-operários, camponeses e ex-camponeses, trabalhadores em funções, reformados e desempregados).
Também em Inglaterra, não há hoje equivalente dos inquietos «Angry Young Men» dos anos 50 do século XX. Onde estão os John Osborne («Look Back in Anger»), os Kingsley Amis («Lucky Jim»), os Colin Wilson («The Outsider»), os Harold Pinter («The Birthday Party»), as Doris Lessing («The Children of Violence»), os Alan Sillitoe («Saturday Night and Sunday Morning») dos tempos actuais – que são os tempos que vieram depois de Margaret Thatcher e do seu hipócrita «capitalismo popular»? Não estão em lado nenhum – ou jazem na Ilha silenciados por uma sonolenta incapacidade de indignação. O leitor interessado no tema poderá consultar em língua portuguesa «Depoimentos dos ‘Angry Men’» (Presença, 1963) ou, em inglês, «Anger and After»(Penguin Books, 1963).
Quanto aos EUA, será bom nem recordar quem são agora os herdeiros de John Dos Passos, Upton Sinclair, John Steinbeck, Erskine Caldwell ou Horace McCoy. Os produtores profissionais de romances parecem ter mais com que se preocupar do que com negros, «hispânicos» ou índios. E, no que se refere a outros marginalizados das delícias do consumismo, dir-se-ia suporem que já se encontram em vias de se transformar em «patrícios».
Não terminaremos sem uma referência aos romances portugueses da década de 40 do século XX. É nesse período que surgem obras como «Gaibéus» (1940), de Alves Redol, «Esteiros» (1941), de Soeiro Pereira Gomes, «Plano Inclinado» (1941), de Afonso Ribeiro, «Multidão» (1942), de Leão Penedo, «Casa na Duna» (1943), de Carlos de Oliveira, «Eu Queria Viver (1943), de Manuel do Nascimento, «Cerromaior» (1944), de Manuel da Fonseca, «Casa da Malta (1945), de Fernando Namora, «Fuga» (1945), de Faure da Rosa, ou «Vagão J» (1946), de Vergílio Ferreira. Como disse Joel Serrão num seu «esboço de problematização» do tema: «Qualquer que seja ou venha a ser, em última instância, o juízo crítico mais pertinente acerca do valor estético ou, até ideológico da novelística social da década de 40, uma coisa se afigura certa e irrefutável: ela contribuiu, mais e melhor do que qualquer movimento literário anterior, para um conhecimento mais fundo e mais vasto das realidades socioeconómicas portuguesas, e para a sua divulgação junto de um público relativamente amplo do romance, que, desse modo, era, ou seria (segundo se esperava), responsabilizado por tarefas que a todos, igualmente, se impunham.»
Michael Connelly, considerado um dos mestres do romance policial norte-americano, bem pode afirmar a este «Le Magazine Littéraire» que «o romancista não tem nenhum dever». Mas o sentido da responsabilidade social dos ficcionistas foi de ontem e é de hoje, aqui como em França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos: decorre da cidadania – e é inalienável.
«Le Magazine Littéraire», Maio de 2012, 98 páginas