António Rego Chaves
No seu «Journal», escrevia André Gide (1869-1951) em 1933, já depois da ascensão ao Poder de Adolf Hitler: «Tal como a conversão ao catolicismo, a conversão ao comunismo implica uma abdicação do livre exame, uma submissão a um dogma, o reconhecimento de uma ortodoxia. Ora todas as ortodoxias me são suspeitas. O importante, dizem eles, é ‘crer’; e que tudo o resto será dado por acrescento. Depois disso adaptam-se, e adaptam aos seus fins os ensinamentos do Evangelho, e pretendem reconciliar-se com Deus reconhecendo que pecam, que pecaram, que são pecadores. É a sua maneira de ser religiosos que torna a religião detestável. É em nome da Religião que eles combatem, e eis a razão por que é a Religião que nós combatemos. Mas, é necessário que o diga, o que me conduz ao comunismo não é Marx, é o Evangelho. Foi o Evangelho que me formou. Foram os preceitos do Evangelho que encaminharam o meu pensamento para o comportamento de todo o meu ser, que me inculcaram a dúvida no meu valor próprio, o respeito pelos outros, pelo seu pensamento, pelo seu valor, e que, em mim, fortificaram esse desdém, essa repugnância (que sem dúvida já era inata) por toda a posse egoísta, por todo o açambarcamento.»
O homem que assim falava foi, no dizer de André Malraux, «o contemporâneo capital» de todos os franceses despertados para a vida intelectual entre 1920 e 1935 e incomodara já meio mundo com o seu protestantismo, a sua homossexualidade, o seu anticolonialismo, a sua obra, enfim: «Les Nourritures terrestres» (1897), «Les Caves du Vatican» (1914), «Si le grain ne meurt» (1919), «Corydon» (1924), «Les Faux-Monnayeurs» (1925), «Voyage au Congo» (1927), «Retour du Tchad» (1928). A partir de 1930 começara a denunciar o capitalismo e a manifestar a sua simpatia por uma sociedade sem classes, ao mesmo tempo que se declarara pronto a dar a sua vida pela União Soviética. Neste contexto é convidado a visitar «a pátria do socialismo» e escreverá «Retour de l’U.R.S.S.» (1936) e «Retouches à mon retour de l’U.R.S.S.» (1937), duas obras que hoje podemos considerar politicamente históricas pela liberdade do pensamento de um intelectual que, sendo apoiante confesso da causa comunista, não se inibe de criticar sem concessões a realidade soviética. Não recuará, mesmo, perante a afirmação de que a URSS «traiu todas as nossas esperanças». Sartre: «Gide teve a coragem de se colocar contra a URSS quando era perigoso fazê-lo e a coragem, ainda maior, de se retractar publicamente quando julgou, com razão ou sem ela, ter-se enganado.»
«Todas as ortodoxias me são suspeitas» – avisara. E especificara: «O que me horroriza é que a religião comunista comporta, também ela, um dogma, uma ortodoxia, textos de referência, uma abdicação da crítica…» (…) «Mesmo que o texto seja de Marx ou de Lenine, não me submeterei a ele senão se o meu coração e a minha razão o aprovarem, e se me escapo à autoridade de Aristóteles ou do apóstolo Paulo, não é para cair sob a deles.» Reconhecer-se-ão em muitas críticas de Gide à URSS de Estaline o pensamento de Trotski? Sem dúvida que sim. Mas, se é certo que o grande escritor intervirá junto de Léon Blum para que o Governo francês facilite a passagem do «profeta desarmado» da Noruega para o México, onde aliás viria a ser assassinado a mando de Estaline, não é menos certo que manterá a independência de juízo. Opina o biógrafo Pierre Lepape: «Foi comunista, não será trotskista. O comunismo era uma escatologia, o trotskismo não é mais do que uma política. Gide não faz o luto de um para cair no outro.»
Continua Pierre Lepape: «Num primeiro tempo, a palavra de ordem dos estalinianos franceses perante a publicação de ‘Retour de U.R.S.S.’ é o silêncio. Nem uma palavra em ‘L’Humanité’, nem mesmo depois da publicação do prefácio em ‘Vendredi’, o hebdomadário criado por Jean Guéhenno, André Chamson e Andrée Viollis. Há que criar o vazio em torno da obra de Gide e em torno do próprio Gide, num período politicamente delicado. Em Moscovo abriram-se os grandes processos de liquidação da velha guarda bolchevique. Zinoviev, Kamenev e catorze outros antigos companheiros de Lenine são fuzilados; verificam-se centenas de detenções, seguidas por processos falsificados. Em França, sob os governos da Frente Popular, a rivalidade entre socialistas e comunistas acentua-se, em proveito destes últimos.» Gide será depois contestado por Romain Rolland e Paul Nizan, insultado por comunistas de todo o resto da Europa, caluniado por Ilia Ehrenburg, abandonado por Aragon e Guéhenno. Irá, por isso, lançar-se nos braços da direita? Decerto que não.
Escrevera: «Não há partido que me tenha – quero dizer, que me retenha – e que me possa impedir de preferir, ao próprio Partido, a verdade. A partir do momento em que a mentira intervém, sinto-me constrangido; o meu papel é denunciá-la. É a verdade que me prende; se o Partido a abandona, eu abandono o Partido logo em seguida.» (…) «Importa ver as coisas tal como elas são e não tal como se desejava que elas fossem: a U.R.S.S. não é o que desejaríamos que fosse, o que tinha prometido ser, o que ela se esforça ainda por parecer; ela traiu todas as nossas esperanças. Se não aceitamos renunciar a elas, há que transportá-las para outro lado.»
O pesado luto de André Gide seria, pois, pela sua «pátria de eleição», a União Soviética traída por Estaline, mas não pelo ideal comunista. Previra desde logo o aproveitamento que os «partidos inimigos», ou seja, usando palavras de Alexis de Tocqueville, «aqueles para quem o amor da ordem se confunde com o gosto pelos tiranos», pretenderiam fazer das suas críticas. Mas manteria com firmeza a ideia segundo a qual «os erros particulares de um país não podem chegar para comprometer a verdade de uma causa internacional, universal.» Terá morrido com essa íntima convicção.
André Gide, «Retour de l’U.R.S.S. suivi de «Retouches à mon ‘Retour de l’U.R.S.S.’», Gallimard, 2009, 213 páginas