António Rego Chaves
Este polémico ensaio de Jean-Paul Sartre sobre Baudelaire (1821-1867), curiosamente dedicado a Jean Genet, despertou desde 1947 numerosas iras, da esquerda à direita, dos ateístas aos católicos, de outsiders a académicos. Havia boas razões para tal: fiel às teses existencialistas vulgarizadas nos anos quarenta do século passado, o filósofo responsabilizava o «poeta maldito» pelo seu trágico «destino». Ou seja, o terrível percurso percorrido teria derivado da sua livre vontade – e pouco seria atribuível à «fatalidade».
Michel Leiris explicita em ‘nota’ inserida nesta 45.ª edição da obra a tarefa empreendida por Sartre: «Determinar qual foi a vocação (destino escolhido, convocado, ou no mínimo consentido – e não destino passivamente suportado) de Charles Baudelaire e, se a poesia é veículo de uma mensagem, precisar qual é, no caso em apreço, o conteúdo mais amplamente humano de tal mensagem. A intervenção do filósofo revela-se, aqui, distinta quer da do crítico, quer da do psicólogo (médico ou não-médico), quer da do sociólogo.»
O pensador quase não recorre à obra estritamente literária do autor de «Les Fleurs du Mal»: dado o objectivo que se propõe, interessam-lhe mais os «escritos íntimos» e as cartas que dirigiu a sua mãe ou a alguns outros dos seus próximos. A sua tese sintetiza-a em poucas palavras e surge a terminar o estudo que consagrou ao poeta: «A escolha livre que o homem faz de si próprio identifica-se absolutamente com aquilo a que se chama o seu destino.» Feitas as contas, o que Sartre diz de Baudelaire poderia ser dito em relação a qualquer outro homem: somos todos responsáveis pelo nosso «destino» – na medida em que as nossas escolhas são «livres».
O «ponto fraco» do texto do filósofo reside precisamente aqui – na petição de princípio que é classificação de todas as escolhas de Baudelaire como «livres». Na verdade, se mergulhamos em qualquer das suas biografias (a de François Porché foi há meio século traduzida em Portugal) ressaltam da existência do poeta dois acontecimentos fundamentais da sua infância: a morte do pai, homem de cultura, ainda ele não tinha completado seis anos, e a sua «substituição» por um padrasto militarista, futuro general. Estes factos não se afiguraram relevantes a Sartre – e terão viciado a tese do ensaio. O filósofo parece admitir que Baudelaire escolheu livremente a morte do pai e o segundo casamento da mãe (Sartre também foi, de alguma maneira, «vítima» de um segundo casamento de sua mãe), ao escrever, referindo-se às vicissitudes da existência do poeta, aliás marcada desde cedo pela sífilis e pelo mal-estar psíquico que o poderão ter conduzido ao consumo de estupefacientes, que «de nenhuma das suas infelicidades se pode dizer que seja imerecida, inesperada». A dar crédito à gravidade da ferida aberta pela morte do pai e pela sua «substituição», ficam-nos duas frases de uma carta escrita à progenitora, em 6 de Maio de 1861, já com 40 anos: «Estou só, sem amigos, sem amante, sem cão e sem gato a quem me queixar. Não tenho senão o retrato de meu pai, que está sempre mudo.»
No extenso prefácio que elaborou para a cuidada edição de «Fusées», «Mon coeur mis à nu» e «La Belgique déshabillée», André Guyaux denuncia a extrema severidade do filósofo, criticando-o nos seguintes termos: «Na análise que Sartre propõe da singularidade de Baudelaire, da sua ‘diferença’ (…) introduz uma forma de reprimenda, feita a Baudelaire, por não ter ocupado um lugar no combate pela libertação do homem. Ele queria poder rectificar o seu destino, corrigi-lo: Baudelaire deveria ter-se revoltado contra sua mãe, pelo Progresso; contra o Imperador, pela democracia; contra o conta-gotas financeiro do notário Ancelle [nomeado por um tribunal para administrar a herança recebida de seu pai], pelas teorias de Proudhon; contra o general Aupick [o padrasto] pelo espírito de [17]89 ou de [18]48; contra o catolicismo pelo ateísmo, etc. Numa palavra, reprovando Baudelaire por não ter partilhado os optimismos humanitários de Victor Hugo e os tropismos proletários de George Sand, Sartre censura-o sobretudo por não ter partilhado os seus próprios compromissos.» Salta à vista o acinte reaccionário, mas subsistem os fundamentos da discordância.
A verdade é que Baudelaire, como diz Sartre, em vez de contestar os princípios em nome dos quais o general Aupick e o notário Ancelle o reprovavam, «adoptou sem discussão a moral do padrasto». Mesmo durante o célebre processo judicial que conduziria à sua condenação, nunca ousou defender o conteúdo de «Les Fleurs du Mal», chegando a apresentar a sua obra-prima como «edificante» e destinada a inspirar o horror do vício. Não contente com isso, ainda procurará obter um lugar na Academia Francesa – como se assim recuperasse a respeitabilidade perdida junto da burguesia letrada parisiense –, proclamar-se-á «anti-semita» e erigirá o ultra-reaccionário Joseph de Maistre (falecido precisamente no ano em que Baudelaire nasceu) seu mentor no campo das ideologias políticas.
Conclui Sartre: «A sua história é a de uma muito lenta e muito dolorosa decomposição. Tal como era aos vinte anos, tal o encontramos em vésperas da morte: está simplesmente mais sombrio, mais nervoso, menos vivo; do seu talento, da sua admirável inteligência, não restam senão recordações. E tal é sem dúvida a sua singularidade, essa ‘diferença’ que procurou até à morte e que não podia aparecer senão aos olhos dos outros: foi uma experiência em circuito fechado, qualquer coisa como o ‘homunculus’ do Segundo Fausto…» Sabendo-se que Baudelaire morreu hemiplégico e afásico, há aqui um limiar de desrespeito humano que o filósofo se deveria ter inibido de transpor. Talvez só nos seus últimos anos se tenha apercebido disso, quando, depois de usar e abusar das anfetaminas e atingido pela cegueira, já era tarde de mais para «emendar a mão»...
J.-P. Sartre, «Baudelaire», Gallimard, 1959, 224 páginas