António Rego Chaves/Livros mesmo lidos, coração das casas

Entras na casa desconhecida, cumprimentas o teu anfitrião, esperas que ele te convide a ocupar a ampla poltrona que espera o visitante solitário, sentas-te devagar. Depois vais olhando timidamente os objectos que te rodeiam, todos eles desconhecidos. Ali um quadro recorda-te Veneza, além uma escultura de marfim, certamente vinda de algum país asiático, depois este móvel, aquela janela, a porta. A porta dá acesso a outras salas que tu nunca viste e cujo conteúdo ignoras. A porta que oculta o coração das casa, os seus livros.

Porque sabes que as casas têm um coração e esse coração, aquele que verdadeiramente nela pode permanecer, não lhes é emprestado pelos homens e pelas mulheres que por elas passaram, pelas suas crianças e pelos seus velhos, mas pelos livros lidos, de cuja existência o intruso que nelas entra talvez nunca possa suspeitar. E és invadido por uma súbita curiosidade, percebes que o essencial do que o teu interlocutor te transmite te vai escapar, porque estás concentrado numa só pergunta, obsessiva: «Que leu, que lê?»

Cuidado, que podes ter uma surpresa desagradável. Cuidado porque há livros que parecem livros mas que não são livros, mas apenas encadernações sem conteúdo, cujas páginas inexistentes jamais foram ou serão folheadas pelos seus proprietários. Dir-se-iam fúteis e vaidosas rendinhas de bilros, bibelots unicamente destinados a enfeitar uma ou outra parede, sinais apenas exteriores de uma cultura possível e ostentada com o desejo de fornecer ao visitante uma falsa – e lisonjeira – imagem dos seus habitantes.

Lembras-te? Um dia, eras tu muito jovem, dormiste numa sala desconhecida, algures perto de Chartres, rodeado de duas ou três centenas de belas encadernações, afogado em douradinhos, torcidos e tremidos. Antes de te deitar começaste a espiar os livros, até que resolveste retirar um da estante, chamado Madame Bovary. Abriste-o? Não, não conseguiste abri-lo, porque não era possível, não era um livro para ler. Tal como todos os outros que o rodeavam, não tinha uma única folha, impressa ou por imprimir: só lombadas para portugueses verem.

A tua expectativa aumenta à medida que o tempo passa. Será que, antes ou depois de te sentares à mesa para jantar, terá oportunidade de conhecer melhor o velho senhor que teve a gentileza de te convidar para sua casa, deparando finalmente com uma estante repleta de livros, será que poderás espreitar um ou outro título, será que conseguirás ter uma ideia rigorosa daquilo que, de facto, o tem interessado durante a sua longa existência?

Repetes para ti mesmo: as casas têm um coração e esse coração, aquele que verdadeiramente nelas pode permanecer, não lhes é emprestado pelos homens e pelas mulheres que por elas passaram, pelas suas crianças e pelos seus velhos, mas pelos livros lidos. E sabes que, assim como não gostas de acompanhar, à mesa, as pessoas que não conseguem apreciar uma boa refeição, assim como te é penoso saborear sozinho um bom vinho, enquanto alguém, mesmo à tua frente, só beberica golinhos de água, não serás capaz de te prender a uma casa que não tenha livros, livros lidos, sublinhados, amados por quem os leu.

Como se adivinhasse o teu pensamento, depois de jantar o velho senhor conduz-te à sua biblioteca. Aí tomas o cognac que ele te oferece, enquanto, finalmente concentrado, o ouves falar de Papini, de Malaparte, de Unamuno. Agora sim, tens a certeza: esta casa tem um coração que te envolve, a ti e ao velho senhor, coração que faz crescer em voz a simpatia e a amizade, que torna possível o diálogo aberto e cúmplice de quem leu – e porventura também sublinhou – os mesmos livros e as mesmas frases.

Mais tarde, muitos anos mais tarde, terás nas tuas mãos os livros que o velho senhor, então já desaparecido, decifrou e anotou durante o seu longo percurso de homem devorado pelo desejo de saber. Mais tarde, muitos anos mais tarde, a saudade que sentirás não será total, porque o velho senhor deixou intacto o coração da casa que povoou com a sua inquietação, as suas dúvidas e as suas certezas, a sua cultura vivida. Mais tarde, muitos anos mais tarde, compreenderás que o velho senhor nunca estará verdadeiramente ausente enquanto aqueles livros ali permanecerem como os deixou, um tanto desarrumados, nas estantes espalhadas por toda a casa e forem familiares aos seus habitantes. Mais tarde, anos mais tarde, sentirás, pela primeira vez sentirás dentro de ti o que só sabias de silogismos: que as casas têm um coração e que esse coração, aquele que verdadeiramente nelas pode permanecer, não lhes é emprestado pelos homens e pelas mulheres que por elas passaram, pelas suas crianças e pelos seus velhos, mas pelos seus livros lidos. Mesmo lidos, sublinhados, amados.

Publicado no «Diário de Notícias» em 21.04.2002