António Rego Chaves
Anuncia o autor, nas primeiras páginas da sua obra, que pretende demonstrar, «contrariando quer a propaganda salazarista, quer a da oposição ao Estado Novo», que «Salazar manteve alguns aspectos essenciais da I República relativamente ao Vaticano, sobretudo das facções mais moderadas do republicanismo». Considera também ser inegável que o regime de separação entre a Igreja e o Estado inaugurado por Afonso Costa em 1911 se manteve durante todo o Estado Novo. Cardoso Reis salienta, ainda, que não oferece dúvidas o apoio de Salazar ao «regalismo soft» inaugurado por Sidónio Pais. O ditador teria ainda ido buscar ao sidonismo a ideia de «um projecto político que visava federar todas as correntes de direita e centristas, republicanas e monárquicas, laicas e católicas, em torno de um homem forte».
Salazar, muito consciente da importância das relações entre Portugal e o Vaticano, chamou a si a batuta dos Negócios Estrangeiros, fosse qual fosse o titular da pasta. Dir-se-ia pensar que tais assuntos eram demasiado sérios para serem entregues às nada fiáveis iniciativas de ministros ou embaixadores. De facto, se é certo que a estratégia de conquista do Poder por Salazar incluía a definição rigorosa das relações com a Santa Sé, não é menos certo que esse não seria o primeiro dos seus objectivos. Assim, o homem que sabia muito bem o que queria e para onde ia, como fizera saber logo desde o discurso de posse como titular das Finanças – cargo para que fora nomeado por pressão clara dos bispos e do órgão oficioso da Igreja, o «Novidades», sobre os militares que na época tinham ocupado o Poder – , marcaria as décadas iniciais do seu consulado por três períodos com prioridades bem definidas: de 1928 a 1932, questões financeiras e económicas; de 1932 a 1936, problemas políticos e sociais; de 1936 até 1945, relações internacionais. Só depois de superada a crise financeira, restaurada a autoridade interna do Estado e consolidado o seu poder pessoal se debruçaria sobre o «dossier» do Vaticano. Salazar fora, aliás, muito claro em declarações prestadas a um redactor daquele jornal: «Diga aos católicos que o meu sacrifício me dá direito de esperar deles que sejam, de entre todos os portugueses, os primeiros a pagar os sacrifícios que lhes peça e os últimos a pedir os favores que eu lhes não posso fazer.»
A conjuntura internacional forçá-lo-á, por vezes, a rever pormenores importantes da sua rígida agenda política: a evolução da situação em Espanha, que conduzirá à Guerra Civil, será um dos factores que, não podendo ser previsto desde 1928, o levará a empenhar-se com todos os meios ao seu alcance, aliás em dissonância com o Vaticano, na vitória de Franco. Aproveitará a ocasião para assumir a pasta da Defesa e afastar do activo muitas das altas chefias militares mais velhas e maioritariamente republicanas e laicas, que decerto não teriam visto com bons olhos uma concordata com o Vaticano. Conhecedor do militante anticomunismo da ditadura portuguesa, Pio XI não se coibirá de dar ao homem de Santa Comba o que classificou como «um conselho paternal»: «Resista. (…) Eu não me refiro ao comunismo, refiro-me ao racismo, ao nazismo criminoso que perverte as almas». E até o cardeal Eugenio Pacelli, então secretário de Estado do Vaticano e futuro Pio XII, que mais tarde daria inesquecíveis provas de silencioso antijudaísmo, se permitirá, em 1937, fazer o seguinte reparo ao responsável pela legação portuguesa, entre 1936 e 1940, o filonazi e anti-semita António de Quevedo: «A Igreja não pode aplaudir qualquer orientação política que se pareça com o nazismo. (…) Se nós sabemos que entre os nacionalistas espanhóis há gente de primeira ordem, também não ignoramos que, entre os legionários, há muitos de tendências nazistas, gente inconveniente e perturbadora…»
Terminada a Segunda Guerra Mundial, quebra-se a débil convergência entre Lisboa e o Vaticano, que assentara nas tentativas levadas a cabo por ambas as partes no sentido de se obter a neutralidade de Franco e Mussolini: Pio XII, inteligentemente, adapta-se aos novos tempos, ao passo que Salazar enceta um irreversível processo de «fossilização», recusando-se a reconhecer que o mundo à sua volta está a mudar e apostando, «orgulhosamente só», no regime de partido único e no colonialismo – contra a democratização e a descolonização. Bem mais estadista do que católico militante (como nos tempos em que dirigira com Gonçalves Cerejeira, futuro Cardeal Patriarca de Lisboa, o CADC em Coimbra), tenta impor pela força, sem dar quaisquer indícios de flexibilidade, o «interesse nacional» tal qual o interpreta. O manso católico cedeu o lugar a um obstinado «homem providencial» incapaz de diálogo político.
Em 1940, a Concordata de separação jurídica e colaboração prática com a Santa Sé e o Acordo Missionário, se puseram fim à «questão religiosa» herdada da I República, estiveram no entanto longe de iniciar um clima de real pacificação entre o Estado Novo e o Papado: basta recordar a questão do Padroado do Oriente (1947-1953), em que Pio XII se mostrou bem mais próximo de Nehru do que de Salazar; a polémica visita do líder indiano a Pio XII, em 1955; o caso do Bispo do Porto, que forçou ao exílio de D. António Ferreira Gomes, em 1959; a viagem de Paulo VI a Bombaim, em 1964, menos de três anos após a ocupação de Goa pela União Indiana; a questão da Guerra Colonial e das independências africanas, posta à diplomacia portuguesa por João XXIII desde 1961, tornada pública por Paulo VI e culminando, já durante o consulado de Marcelo Caetano, com a audiência concedida pelo Papa, em Julho de 1970, aos líderes do MPLA, da Frelimo e do PAIGC.
Salazar posicionou-se na década de 1960 sempre nos antípodas do cristianismo de um João XXIII, que aliás considerava o Estado Novo um regime de liberdades reduzidas. Como conclui Cardoso Reis, o ditador «terá sido muito católico privadamente, mas em público foi acima de tudo um nacionalista e um estatista e, consequentemente, um regalista nas suas relações com o catolicismo». E «pouco ou nada papista».
Bruno Cardoso Reis, «Salazar e o Vaticano», Imprensa de Ciências Sociais, 2006, 351 páginas