António Rego Chaves
A mais elucidativa apresentação da autora de «O Mal no Pensamento Moderno – Uma História Alternativa da Filosofia» talvez tenha sido feita pela própria, ao escrever: «Como tantos outros, vim para a filosofia para estudar questões relacionadas com a vida e a morte, e ensinaram-me que a profissionalização exigia que as esquecesse. Quanto mais aprendia, mais me convencia do contrário: a história da filosofia era, de facto, animada pelas questões que me levavam a ela.» Tendo iniciado os seus estudos universitários em Harvard, Susan Neiman poderia ter-se ficado pela «filosofia analítica», rejeitando a especulação e a metafísica gratas à «filosofia continental», mas acabou por considerar que os problemas teológicos são legítimos no discurso filosófico. E decerto está hoje em profundo acordo com Schopenhauer quando o filósofo afirma que «o carácter mais específico do assombro que nos leva a filosofar floresce obviamente a partir da visão do mal e da maldade do mundo».
Ora o mal é mal, não apenas desde Job, mas desde que o mundo é mundo. Que nos trouxeram de novo o terramoto de 1755 e Auschwitz, considerados nesta obra como os marcos essenciais na concepção do mal nos últimos 250 anos? Responde a autora: «Lisboa revelou como o mundo está longe da humanidade; Auschwitz revelou como os seres humanos estão longe de si mesmos. Se a separação entre o natural e o humano faz parte do projecto moderno, a distância entre Lisboa e Auschwitz mostrou como era difícil manter esses dois domínios afastados.»
Será lícito argumentar que a Guerra dos Trinta Anos, a I Guerra Mundial, o capitalismo, o comunismo, o fascismo, o colonialismo, Hiroxima ou Nagasaki causaram milhões e milhões de vítimas, pelo que Lisboa e Auschwitz não nos poderão surgir como rupturas indiscutíveis na história do mal. Sucede, porém, que o terramoto ocorreu em pleno Iluminismo, circunstância que permitiu arredar a Providência divina da justificação do fenómeno, abrindo caminho à explicação científica das catástrofes naturais. Por isso mesmo, o pensamento europeu entendeu que não existe qualquer relação de causalidade entre aquelas e os males morais: há, pois, na medida do possível, que os prever e controlar, mas sempre renunciando a suspeitas incursões no domínio religioso. Sintetiza Susan Neiman: «Poderemos reduzir as mudanças dizendo que a Humanidade perdeu a fé no mundo em Lisboa e que perdeu a fé em si própria em Auschwitz? Só com duas importantes reservas. O significado dos campos da morte polacos tornou-se claro no final do século XX, mas durante muito tempo isso não foi absolutamente evidente». Primeiro, porque para muitos pensadores o colapso se deu muito mais cedo, com a I Guerra Mundial; segundo, porque o julgamento de Nuremberga viu o assassínio sistemático de judeus apenas como mais um entre muitos crimes de guerra de que a Alemanha foi culpada. Ora, opina a ensaísta, «Auschwitz foi conceptualmente devastador porque desvendou uma possibilidade na natureza humana que tínhamos a esperança de não ver.» Não haveria, mesmo, «resposta intelectual» concebível aos campos da morte. Desde «Eichmann em Jerusalém», a polémica reportagem de Hannah Arendt, algo, no entanto, parece ter ficado esclarecido de uma vez por todas: que não foram seres demoníacos que puseram em prática a «solução final» nazi para os judeus, mas homens como Eichmann, como a maioria de nós, homens «normais» dispostos a «vender a alma a preço de saldo» para «subir um furo na hierarquia burocrática». Aterrador panorama, sem dúvida, mas susceptível de provocar menos uma investigação acerca da ideologia atribuível aos carrascos de serviço à causa hitleriana do que uma atitude de enojado desprezo perante tão abjecto programa de «luta pela vida». Neste contexto, será bom não esquecer que o austríaco Jean Améry, autor de uma pungente descrição da vida em Auschwitz, apontou o que parece ser a raiz do mal metafísico: nada, mesmo nada, corresponde ao processo universal de envelhecer e morrer. Todos morremos: a morte, eis o inimigo fundamental da razão, ocorra ela em Auschwitz, ou no campo de batalha, ou por acidente, ou por doença, ou por velhice. Tal escândalo bem mereceria ter sido aprofundado em «O Mal no Pensamento Moderno». Pena que certas reflexões maiores, como as de Vladimir Jankélévitch, Paul-Louis Landsberg ou Lévi-Strauss, não constem sequer da bibliografia utilizada pela ensaísta norte-americana.
Susan Neiman sobrevoa, não apenas os pensamentos dos «defensores de Deus» (Leibniz e Pope), como os de Rousseau, Kant e Hegel, dos «condenadores do Arquitecto» (Bayle, Voltaire, Hume, Sade, Schopenhauer), de Marx, Nietzsche e Freud, Camus, Arendt, Adorno e Horkheimer, fechando com John Rawls. É talvez o autor de «Uma Teoria da Justiça» que nos aponta uma luz ao fundo do túnel que conduz ao futuro, sugerindo que «definir directrizes para resolver problemas morais e políticos pode certamente contribuir para resolver males específicos». Diz a autora: «Rawls descreve o objectivo da sua obra ao demonstrar que uma utopia realista é possível. Uma utopia realista é uma sociedade na qual os maiores males da história humana – a guerra injusta e a opressão, a fome e a pobreza, o genocídio e os assassínios em massa – seriam eliminados por meio de instituições politicamente justas. Sem a esperança de que isso possa acontecer, pode questionar-se sensatamente, com Kant, se vale a pena viver nesta Terra». Afastando a resignação e o cinismo, mesmo indignando-se, John Rawls, frisou Thomas Pogge, «em toda a sua vida esteve interessado na questão de saber como e em que medida a vida humana é remível».
Considerando que «nenhum pensador sério ignorou o facto de os males contemporâneos deverem ser tratados em termos políticos» e que «as questões políticas podem emergir das metafísicas e continuar entrelaçadas com elas», Neiman conclui que, «se a primeira obrigação moral é proporcionar reflexões que possam ajudar a conceber soluções políticas, a primeira obrigação filosófica é reflectir sobre o que as precede.» Foi o que tentou fazer, por vezes com brilho, neste trabalhoso ensaio.
Susan Neiman, «O Mal no Pensamento Moderno», Gradiva, 2005, 401 páginas