António Rego Chaves
Poderia ter sido apenas génio ou esquizofrénico, revolucionário ou conservador, autobiógrafo ou ficcionista, socialista ou individualista, democrata da cultura ou aristocrata do espírito, céptico ou místico, misógino, antifeminista militante e anti-semita ou assumido humanista, misantropo ou cosmopolita. Mas, valha a verdade, foi tudo isso de tempos em tempos – ou ainda mais.
O sueco August Strindberg (1849-1912), nascido e falecido em Estocolmo, mal e bem vivido um pouco por toda a Europa, três vezes divorciado, filho de um burguês e da sua criada ou «governante» – cada um escolherá a terminologia que entender mais «correcta» –, sempre obcecado pelas diferenças entre as chamadas «classes superiores» e as pretensas «classes inferiores», fascinado por Kierkegaard e Swedenborg, admirado por Nietzsche, Kafka e Adamov, dissecado a longa distância num livro notável («Génio e Loucura») pela intuição filosófica e pelo talento psiquiátrico de Karl Jaspers, autor de 58 peças de teatro, sete ou oito grandes romances, uma dúzia de livros de contos, estudos históricos, ensaios científicos – para não falar do conteúdo das dezenas de artigos publicadas em jornais e revistas –, morreu desacompanhado, incorrigível e sem receber o Nobel da Literatura, mas certamente convencido de ter dito e feito o que podia e devia dizer e fazer no Planeta que frequentou, sem visível júbilo, na infância, juventude e maturidade, durante pouco mais de seis dezenas de anos. Talvez uma sua eloquente confissão possa resumir toda a desolação que sempre o visitou, onde quer que habitasse: «Desde a minha meninice que procurei Deus, mas só encontrei o Diabo.»
Nesta edição portuguesa da «Breve Catequese para a Classe Oprimida», transcreve o tradutor e prefaciador, Alexandre Pastor, um texto redigido pelo autor em 1884: «Sou socialista, niilista, republicano, enfim, sou tudo o que possa ser contrário aos reaccionários.» (…) E gostaria de pôr tudo de pernas para o ar para ver o que se encontra no fundo. Acho que estamos de tal modo emaranhados e somos tão terrivelmente manipulados, que a nossa vida, para que a possamos estudar, temos primeiro que rebentar com ela, queimá-la, para depois recomeçar tudo de novo.»
Definido o perfil ideológico, August Strindberg, em jeito de catequese (servindo-se de perguntas e respostas ao gosto do catequista, para eficiente «conversão» dos catecúmenos), abordará sucessivamente a religião, a política, as leis, as ciências e as artes, a economia, a filosofia, a história, a estética, as ciências naturais e a moral. Tudo isto a bem das classes oprimidas de todos os tempos, que no entanto correm o risco de não poder despender, em Portugal, os oito euros e quarenta cêntimos que o eloquente «manifesto» elaborado em sua intenção custa por estas paragens.
Ajustadas as mesquinhas contas, vale a pena referir algumas «ingénuas» perguntas e as respectivas respostas, escolhidas quase ao acaso, da «Catequese». «P. – O que se entende por lei? R. – É uma invenção da classe dominante para manter a classe baixa sob o seu domínio.» (…) P. – O que se entende por economia? R. – É uma ciência inventada pela classe dirigente para se apoderar do fruto do trabalho das classes baixas.» (…) «P. – O que se entende por filosofia? R. – Filosofia é uma procura da verdade. P. - Como é possível, então, que a filosofia seja um amigo da classe dirigente? R. – Bem, porque é ela que paga aos filósofos para que eles descubram apenas verdades aprazíveis. P – E se forem descobertas algumas menos aprazíveis? R. – Então a essas chamam-lhes mentiras, e deixa-se de pagar aos filósofos.»
Tudo o resto é escrito mais ou menos neste tom cínico e ameno, sem grandes novidades para o século XXI – pelo menos no que diz respeito à classe não-oprimida que se pavoneou pelas universidades. Mas já dá para entender por que motivo é que August Strindberg, apesar da sua gigantesca obra, na época já longínqua em que viveu, e fossem quais fossem o seu génio e a sua loucura, não poderia ver-lhe atribuído pela respeitosa Real Academia Sueca – como aconteceu à sua compatriota Selma Lagerlöf, corria o ano de 1909 –, um respeitável Nobel da Literatura…
August Strindberg, «Breve Catequese para a Classe Oprimida», Ulmeiro, 37 páginas