António Rego Chaves
Em 1992, precisamente no ano em que surgiu «Provas e Três Parábolas» em língua inglesa, declarou George Steiner ao «Le Monde»: «Não estamos senão no início do pós-marxismo. O desabar dessa esperança que se transformou num horror deixa resíduos que ainda vão arder durante muito tempo. Também o cristianismo morre lentamente difundindo todas as espécies de venenos de decomposição. O cristianismo e o marxismo são as duas grandes heresias messiânicas do judaísmo. Este sobreviverá. Mas não penso que nasça, enquanto eu for vivo, um novo sonho colectivo coerente.»
Nasceu em 1929, estudou nos EUA e na Grã-Bretanha, ensinou em Yale, Cambridge, Oxford, Genebra, Nova Iorque, Harvard. Além de brilhante ensaísta e crítico literário, é ficcionista. Viu «tudo» – e o que não pôde ver desde o início do século XX conhece-o tão bem como o que se passou depois de atingir a idade da razão. Perfila-se, hoje, como um dos mais ilustres intelectuais ainda vivos da sua geração. Geração Traída.
Geração Traída, mas por quem? Traída pelos responsáveis por um «socialismo realmente existente» durante o século XX que muito pouco teve a ver com o «socialismo ideal». Entendamo-nos: também o «cristianismo realmente existente» em quase dois milénios muito pouco teve a ver com o «cristianismo ideal». De acordo? Geração Traída, mas por quem? Quem traiu na URSS, depois da morte de Lenine, na Hungria, em 1956, na Checoslováquia, em 1968? Estaline ou Trotsky? Os insurrectos de Budapeste apoiados pela CIA ou Khrushchev? Dubcek na sua ambígua tentativa de neutralidade entre o Leste e o Oeste ou Brejnev? Tudo permanece em aberto, pois tudo depende de sabermos com precisão o que de facto se encontrava em jogo. E a verdade é que tal temática ainda hoje incomoda bom número de ideólogos, sobretudo os do «fim da história». A Guerra Fria está aí para durar. A propaganda não esmorece, a propaganda continua bem viva, a propaganda «obriga».
Geração Traída, mas por quem? Deixemos de lado as «Três Parábolas» – todas elas, aliás, anteriores à queda do Muro de Berlim. Fiquemo-nos pelas «Provas». Provas da grande traição. Provas de múltiplas traições. Provas irrefutáveis.
De quem nos fala George Steiner? Dos «órfãos» de Estaline, claro. Seria desonesto depreciá-los – eles não sabiam o que nós, hoje, sabemos do estalinismo. Fala-nos de militantes que ainda se podiam «agarrar» às ideias de Gramsci e à presença tutelar de Palmiro Togliatti. Fala-nos de «revisionistas» e «trotskistas» expulsos do PCI. Fala-nos de marxistas italianos marginalizados e reunidos, à falta de melhor, num inoperante «Círculo de Teoria e Praxis Marxistas Revolucionárias». Claro que não nos fala deste nosso século XXI, mas de um século irremediavelmente morto e enterrado. O «saudoso» século XX. O século das duas guerras mundiais. O século da ascensão e da queda do fascismo, do nazismo e do «socialismo real». O século em que a Europa, apenas entre Agosto de 1914 e Agosto de 1945, chacinou nada menos do que 76 milhões de homens, mulheres e crianças em guerras, campos de concentração e extermínio, fomes, marchas forçadas.
Explica um sacerdote, católico e comunista: «Tinha de haver alguma coisa mais, além do pão e do circo.» (…) «Foi aí que aparecemos nós. A Madre Igreja. Trazendo a aspirina. Devagarinho agora, meninos bonitos. Não engulam depressa de mais. Deixem-na derreter-se na boca. Embrulhem-na numa hóstia. Empurrem-na com um gole de vinho. Devagar. Porque isto é o seu corpo e o seu sangue misturado com água. Derramado por vocês e agora no vosso íntimo. O analgésico. Para vos ser possível aguentar. Até ao domingo que vem. Com o lixo da vossa vida, a vossa fome e os vossos piolhos, na incontinência do serviço de geriatria ou no dos imbecis recém-nascidos.» (…) «Observem as nossas bem-aventuranças. Que não vos enfureça a injustiça, a riqueza que vos atiram à cara, a tortura do inocente e do indefeso. Não se queixem da vossa miséria. Não exibam os dentes partidos pela fome dos vossos filhos. Tudo isso nada mais é do que provas temporárias. Devem suportá-las com resignação. Sorrir ao empregado do matadouro, baixar a cabeça diante do rico, olhar para o chão quando se faz ouvir o rugido do perverso. Talvez sejam eles os recompensados aqui e agora. Mas a vossa recompensa virá um dia. Reconheçam a sabedoria da minha pregação. Ordem e obediência neste vale de lágrimas: a recompensa espera-vos ao dobrar da esquina do tempo.»
Em tal contexto surge o diálogo:
«– Você sabe o que é o socialismo, reverendo padre? Sabe o que é realmente?
– O que é então, meu amigo, o que é então realmente?
– É a impaciência. A impaciência. É isso o socialismo. Uma vontade furiosa do agora.»
Mas o sacerdote, tão cristão quanto marxista, tinha a resposta na ponta da língua:
«– Aconteceu a mesma coisa nos primeiros tempos do cristianismo. Exactamente a mesma coisa. A impaciência devorava Jesus. Quando amaldiçoou a pobre figueira miserável, ou quando proclamou que tinha vindo trazer a espada. Quando ordenou que os mortos enterrassem os seus mortos, ou quando entrou à pressa em Jerusalém sem estar preparado e armou aquela rixa no pátio do templo. É muito provável que a impaciência dele tenha sido mais terrível do que a sofrida por qualquer outro ser vivo. Tal era a sua impaciência para penetrar o mistério da sua própria origem e por se transformar no que era. E que legou Cristo à sua pequena máfia? Um tesouro de impaciência.»
A Igreja, no entanto, longe de ser fiel a Jesus, ordenou «que se tivesse paciência, e mais paciência, e começou a distribuir tranquilizantes». Tal não foi, como se sabe, a lição de Marx e dos seus seguidores, empenhados em denunciar o «ópio do povo» e em lutar para pôr termo à «exploração do homem pelo homem». A grande tragédia da geração de George Steiner consistiu precisamente no facto de milhares e milhares, senão milhões, de homens e mulheres, impacientes por verem nascer «um mundo novo», terem morrido «com o nome de Estaline no coração». E, porque o ditador não era digno de tal sacrifício de vidas e de sonhos, ela foi a Geração Traída do século XX.
George Steiner, «Provas e Três Parábolas, Gradiva, 2008, 221 páginas