António Rego Chaves
Voltaire (1694-1778) foi sempre incómodo para todos os dogmatismos, fanatismos, sectarismos. Por isso, esta obra – como tantas outras que nos deixou –, desagradará a muitos. Só espíritos sem preconceitos valorizarão com justeza o que considerou serem alguns dos parâmetros essenciais de uma legislação própria de homens civilizados.
O conteúdo do livrinho agora traduzido – «Prémio da Justiça e da Humanidade» (1777) – não será surpreendente para o leitor atento do «Dicionário Filosófico», do «Tratado sobre a Tolerância» ou do «Ensaio sobre os Costumes». Mais uma vez se confirma que o irreverente e anticlerical Voltaire teve razão antes de tempo. Muitos não perdoarão, ainda hoje, tão grande audácia ao arguto e pertinaz cultor das Luzes.
Estavam em causa certos crimes que o filósofo considerava resultantes de uma deficiente organização da sociedade? Como acabar com eles ou, pelo menos, diminuir a sua aterradora frequência? Eis a raiz da solução: «Sendo normalmente a burla, o furto, o roubo, crimes dos pobres, e sendo as leis feitas pelos ricos, não acham que todos os governos dominados pelos ricos deviam começar por tentar extinguir a mendicidade, em vez de esperar as ocasiões para mandá-la para os carrascos?»
Falava-se de intolerância religiosa, isto é, de nos estrangularmos uns aos outros, como sucedia desde o primeiro Concílio de Niceia? Talvez fosse bom lembrar, então, que, «durante (…) séculos de ignorância, de superstição, de fraude e de barbárie, a Igreja, que sabia ler e escrever, ditou leis a toda a Europa, que apenas sabia beber, combater e confessar-se aos monges. A Igreja obrigou os príncipes a jurar exterminar todos os heréticos; significa que um soberano, na sua sagração, jurava matar quase todos os habitantes do universo, pois quase todos tinham uma religião diferente da sua.»
Havia que analisar em concreto as autênticas causas da revoltante desigualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres? Sublinhe-se sem rodeios que «o adultério é um crime em todos os povos do mundo; o adultério das mulheres, entenda-se, pois foram os homens que fizeram as leis. Vêem-se como os proprietários das suas esposas, elas são seus bens; o adultério rouba-as; introduz nas famílias herdeiros estranhos. Junte-se a estas razões a crueldade do ciúme, e não nos admiremos de que em tantas nações, logo que saíram do estado selvagem, o espírito de propriedade tenha decretado a pena de morte contra os sedutores e as seduzidas.»
Tornava-se desejável fomentar uma convivência pacífica entre as religiões? Acentue-se que «mais do que uma nação proscreveu, sob penas muito rigorosas, os casamentos com pessoas que não professam a religião do país. Foi a política que fez esta lei: mas a política muda e o interesse do género humano não. O bem público não exige, a longo prazo, que os dois sexos de religiões opostas se reúnam? Haverá uma forma mais suave e mais segura de estabelecer, finalmente, a tolerância desejada pela Europa: tolerância tão necessária que é a primeira lei (…) de todo o império da Rússia, concebida pelo génio da imperatriz, escrita pelo seu punho e louvada pelo seu povo?»
Ampliava-se excessivamente o conceito de incesto, num mundo que, aliás, como é do senso comum, não estaria povoado por seres humanos se pais e filhas, mães e filhos, irmãos e irmãs, não se tivessem unido sexualmente? «Não será tempo de deixar de ver os casamentos entre primos germânicos como incestuosos? Os nossos governantes poderiam permiti-los para bem das famílias. O Papa permite-os em troca de dinheiro.»
Proliferavam a tortura de suspeitos e os erros judiciais, só alguns tinham meios para recorrer de uma sentença iníqua? Saliente-se que «não há um ano em que um qualquer tribunal não faça perecer em suplícios alguém cuja inocência é depois reconhecida e não vingada. É preciso dinheiro para pedir justiça em revisão; mas as famílias pobres que a pedem estão reduzidas à esmola, enquanto, na capital, trezentos ou quatrocentos mil homens ociosos, depois de se terem ocupado de convulsões durante vinte anos, discutem alegremente sobre uma ópera cómica ou sobre semicolcheias.»
Em Fevereiro de 1777, a Sociedade de Economia de Berna, da qual Voltaire era membro, colocara a concurso o seguinte tema: «Compor e redigir um plano concreto e pormenorizado da legislação acerca das matérias criminais (…) de forma que a brandura da instrução e das penas seja conciliada com a garantia de uma punição pronta e exemplar, e que a sociedade civil encontre a maior segurança possível para a liberdade e a humanidade.» Voltaire concorre e sintetiza as suas ideias sobre o tema, aliás largamente devedoras do pensamento do eminente jurista italiano Beccaria. Daí este texto, onde a pena de morte e a prática da tortura judiciária (que viria a ser abolida em 1789, com a Revolução Francesa, seguindo nesta civilizada decisão a legislação do «despotismo esclarecido» da Rússia de Catarina II) ocupam lugares privilegiados. O filósofo acumula factos: «em Inglaterra, ainda não se revogou uma lei que pune com a morte qualquer furto superior a doze vinténs»; «em 1624, o rei de Espanha, Filipe IV, assinou um édito condenando à forca qualquer pessoa que tenha feito passar uma libra de ouro, prata ou cobre para fora do seu reino»; «em quase todos os países católicos, se se roubar um cálice ou um cibório (…) a pena vulgar para isso é ser queimado». A sua opinião, em pleno século XVIII, não poderia aproximar-se mais da defesa frontal da abolição da pena de morte, que reservaria a um só caso, «quando não houver outro meio de salvar a vida de um maior número de pessoas». «Não proponho o encorajamento do assassínio, mas antes a forma de puni-lo sem um novo assassínio». E advoga novas formas de punição dos crimes, repudiando a barbárie reinante na maioria das nações europeias da época: «Condenai o criminoso a viver para ser útil; que trabalhe continuamente para o seu país, porque fez mal ao seu país. É preciso reparar o prejuízo; a morte não repara nada.» (…) «Não há dúvida que um homem que dedica todos os dias da sua vida a trabalhar em diques para preservar uma região das inundações, ou a escavar canais que facilitam o comércio, ou a dessecar pântanos empestados, oferece mais serviços ao Estado do que um esqueleto pendurado num poste por uma corrente de ferro, ou partido em pedaços por uma roda de carroça.»
Foi preciso esperar mais de duzentos anos (eleição, em 1981, de François Mitterrand como Presidente da República) para que a pena de morte fosse abolida em França…
Voltaire, «Prémio da Justiça e da Humanidade», Nova Vega, 2004, 110 páginas