António Rego Chaves
No seu «Dicionário Filosófico», Voltaire (1694-1778), depois de recordar o conceito de «melhor dos mundos possíveis» de Leibniz (1647-1716), afirma que o pensador alemão prestou ao género humano o serviço de lhe fazer ver que devemos estar muito contentes por vivermos e morrermos como vivemos e morremos, porque o Criador não teria podido fazer melhor obra do que fez. E transcreve o implacável raciocínio de Epicuro (séculos IV-III AC), na versão de Lactâncio (séculos III-IV da nossa era): «Ou Deus quer retirar o mal deste mundo, e não pode, ou pode, e não quer; ou então quer e pode. Se quer e não pode, é a impotência; o que é contrário à natureza de Deus; se pode e não quer, é a malvadez, e isso não é menos contrário à sua natureza; se nem quer nem pode, é ao mesmo tempo a malvadez e a impotência; se quer e pode (a única hipótese adequada a Deus), donde vem então o mal sobre a Terra?»
O terramoto de 1755 vai conduzir Voltaire a abandonar de vez o optimismo e a pôr em causa o providencialismo: «La Providence en a dans le cul», registará em expressiva linguagem de sabor rabelaisiano. Ou, utilizando a mordacidade, mas em termos mais consentâneos com a sua respeitabilidade em toda a Europa culta da época: «Creio na Providência geral, aquela de que emanou para toda a eternidade a lei que regula todas as coisas, tal como a luz jorra do sol; mas não creio que uma Providência particular modifique a economia do mundo por causa de um pardal ou de um gato.»
A metafísica francesa do século XVIII parece por vezes oscilar entre forças tão contraditórias como as protagonizadas pelo cepticismo de Pierre Bayle (1647-1706) e o ocasionalismo de Nicolas Malebranche (1638-1715). Voltaire ficará a dever à teoria da gravitação universal de Isaac Newton (1642-1727) uma base científica para o seu deísmo. Porém, não abdicará de afirmar a necessidade da existência de Deus como garante da ordem estabelecida e da sobrevivência da moral individual e colectiva.
O «Poema sobre o Desastre de Lisboa» pode ser encarado como uma exposição do deísmo, isto é, da não-intervenção divina nos assuntos dos homens, na sua história e no seu destino. Sofrimentos humanos, epidemias, terramotos, perante tais calamidades como é possível assegurar com Alexander Pope (1688-1744), o já referido Leibniz, Shaftesbury (1671-1713) ou Bolingbroke (1678-1751) que «tudo está bem»? Não será isso «um insulto às dores da nossa vida»? (…) «Se quando Lisboa, Méquenés, Tetuão, e tantas outras cidades foram engolidas com um tão grande número dos seus habitantes, no mês de Novembro de 1755, os filósofos houvessem bradado aos infelizes que escapavam a custo das ruínas: “Tudo está bem; os herdeiros dos mortos aumentarão as suas fortunas; os pedreiros ganharão dinheiro a reconstruir casas; as bestas alimentar-se-ão dos cadáveres enterrados sob os escombros: é o efeito necessário das causas necessárias; vosso mal particular nada é, estais contribuindo para o bem geral” – um tal discurso seria certamente tão cruel quanto funesto foi o tremor de terra.»
O autor do poema desafia aqueles que ainda crêem na Providência divina a contradizê-lo: «Filósofos iludidos que bradais “Tudo está bem”;/Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,/Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,/Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados/Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados/Cem mil desafortunados que a terra devora,/Os quais, sangrando, despedaçados e palpitantes embora,/Enterrados com seus tectos terminam sem assistência/No horror dos tormentos sua lamentosa existência!» (…) «Que crime, que falta cometeram estes infantes/Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?» (…) «Mas como conceber um Deus, a bondade mesma/Que prodigalizasse seus bens aos filhos que ama/E sobre eles lançasse os males em torrente?» (…) «Um dia tudo estará bem, eis aí a nossa esperança;/Tudo está bem hoje em dia, eis aqui a ilusão./Os sábios enganaram-me, somente Deus tem razão.»
Quem responde ao poeta-filósofo? O seu «inimigo íntimo» Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), numa «Carta a Voltaire sobre a Providência». O contraditor – que parece convencido de que os homens são de alguma forma culpados dos sofrimentos que os afligem –, procura relativizar males físicos e morais. Pois que diferença faz morrer por causa de um terramoto ou de outra forma não menos cruel? «Será esse um fim mais triste que o do moribundo que cumulamos de cuidados inúteis, que o notário e os herdeiros não deixam respirar, que os médicos assassinam em seu leito a seu bel-prazer, e ao qual os padres bárbaros fazem com arte saborear a morte?» E acrescenta: «Em lugar de tudo está bem, mais valeria dizer talvez: o todo está bem, ou tudo está bem para o todo. É então muito evidente que homem algum poderia oferecer provas directas a favor, ou contra; pois tais provas dependem de um conhecimento perfeito da constituição do mundo e do fito do seu autor, e esse conhecimento está incontestavelmente acima da inteligência humana.» Mas atenua as discordâncias: «Apraz-me bem mais um cristão ao vosso modo que ao da Sorbonne.» Vale dizer: prezo quem duvida das «verdades» da fé, não doutores grávidos de certezas teológicas.
Integram também esta cuidada edição, além de um extracto das «Confissões» consagrado ao «Poema sobre o Desastre de Lisboa», um Edital da Real Mesa Censória de 1770, no reinado de D. José I, que manda queimar na Praça do Comércio da capital portuguesa dezenas de obras proibidas, entre as quais algumas de Voltaire e Rousseau. Como comenta Jorge F. Pires no prólogo, «não era este um dos tais sítios da Europa onde as polémicas intelectuais, as novidades e as inovações eram abrasadas em vez de lidas e discutidas? Em vez de interlocutores, tanto Rousseau como Voltaire tiveram censuras e editais. As consequências continuam ainda hoje à vista de todos.»
Voltaire, «Poema sobre o Desastre de Lisboa», seguido de «Carta a Voltaire sobre a Providência», por Jean-Jacques Rousseau, «Frenesi», 2005, 76 páginas