António Rego Chaves
Os críticos literários decerto saberão encontrar nesta obra Irvin D. Yalom elementos que lhes permitirão catalogá-la com rigor. Quanto a nós, tanto pode ser considerada como um «romance de ideias», como um ensaio apresentado sob a forma de narrativa ficcionada, como uma quase-biografia ou como um diálogo filosófico – porque ela é um pouco de tudo isso. Seja como for que a rotulemos, o seu conteúdo essencial é um fascinante frente-a-frente, em Viena, no ano de 1882, entre duas grandiosas figuras da «Mitteleuropa»: o médico Josef Breuer (1842-1925), celebrado autor, juntamente com Sigmund Freud, de investigações pioneiras sobre a histeria, e Friedrich Nietzsche (1844-1900), o genial criador de «Assim Falava Zaratustra».
Psicoterapeuta e professor emérito de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, Irvin D. Yalom transita com brilhante desenvoltura da realidade para a ficção (tanto quanto se sabe, o cientista e o poeta-filósofo jamais se encontraram) para nos confrontar com dois universos mentais, duas concepções do homem e da existência, duas personalidades irredutíveis. Anote-se, no entanto, que Breuer, com a sua teoria segundo a qual, para abrir caminho à cura, é necessário fazer recordar a certos doentes os acontecimentos traumáticos que eles esqueceram, vai encontrar em Nietzsche, seu paciente, um alvo privilegiado para testar, não apenas as suas arrojadas concepções terapêuticas, mas sobretudo o êxito delas com alguém cujas memória e craveira intelectual se situam muito acima da mediania.
Os biógrafos de Nietzsche apontam o ano de 1882 – quando a sua obra filosófica ainda apenas incluía «Humano, Demasiado Humano», «Meditações Intempestivas», «Aurora» e «Gaia Ciência», embora «Zaratustra» já germinasse no seu espírito –, como crucial na vida afectiva do pensador. Com efeito, foi na Primavera que conheceu e se apaixonou por Lou Salomé, que viria a preteri-lo em favor de Paul Rée. Durante meses será atingido por profunda depressão e encarará, mesmo, a hipótese do suicídio. É então que procura uma saída para a grave crise psíquica que atravessa. E a ficção desenvolve-se, dando origem a um diálogo sempre vivo e acutilante entre o «terapeuta» e o «doente», imersos numa complexa partida de xadrez em que o jogador cuja táctica habitual consiste em tomar a iniciativa de atacar (Breuer) se obriga a optar pela defesa, enquanto aquele a quem parece reservado um papel mais discreto (Nietzsche) aceita passar à ofensiva. Quem será o «doente», quem será o «terapeuta», que «Weltanschauung» prevalecerá, eis o nó do problema.
Chocam-se duas mundividências: a do integrado e prestigiado Josef Breuer (com o seu confortável lar, a sua bela mulher, os seus filhos, a sua segurança de respeitável burguês) e a do desenraizado e então quase desconhecido Friedrich Nietzsche (com o seu nomadismo, a sua dilacerante solidão, a sua ambição de crescer interiormente e «transmutar todos os valores»). A natureza do confronto não permite que sejam encontrados um vencedor e um vencido: talvez porque os dois «adversários» não ignoram que, se em cada Breuer espreita um Nietzsche adormecido, em cada Nietzsche habita um Breuer que se desconhece. E porque se sabem «humanos, demasiado humanos», o seu abraço fraterno, de igual para igual, tornar-se-á possível e espontâneo – depois de Breuer se revelar um mestre e um discípulo para Nietzsche, tal como Nietzsche se perfilara como um mestre e um discípulo para Breuer. Evidencia-se a justeza do aforismo de Zaratustra: «Alguns não conseguem afrouxar as suas próprias cadeias e, não obstante, conseguem libertar os seus amigos.»
Ao longo do diálogo, Nietzsche descobrirá que, afinal, o invejado doutor Breuer é infeliz, se sente acossado por pensamentos estranhos, se odeia a si próprio, teme envelhecer e morrer, experimenta impulsos suicidas, se considera aprisionado pelo casamento e pela vida, protagoniza uma relação distanciada com a esposa, está arrependido por não ter tido contactos sexuais com uma mulher que desejava, se preocupa exageradamente com a opinião dos outros médicos a seu respeito e sofre de ciúmes provocados pela intimidade de uma sua antiga doente com outro clínico. A certa altura, o filósofo resumirá a evolução do diálogo: «Ele tenta compreender-me bem de mais. (…) Quer descobrir o meu rumo e usá-lo também como seu. Ainda não compreendeu que existe o meu rumo e o rumo dele, mas que não existe ‘o’ rumo.»
A verdade é que Breuer «chafurda em águas rasas», «sem nunca compreender que o seu dever seria aperfeiçoar a natureza, superar-se a si mesmo, à sua cultura, à sua família, ao seu desejo, à sua natureza animalesca brutal, para se transformar em quem era. Nunca cresceu, nunca se desvinculou da sua primeira pele: confundiu a promessa com a realização de objectivos materiais e profissionais.» Incapaz de enfrentar as lancinantes questões existenciais propostas por Nietzsche – «todos os pensadores sérios contemplam o suicídio, é um consolo que nos ajuda a atravessar a noite» –, Breuer, em sua áurea mediocridade, acaba, no entanto, por levar Nietzsche a reconhecer que o poeta ainda não se curou a si próprio e que sofre das mesmas aflições que o atormentam. Será que o falcão albergava dentro de si uma galinha?
Josef conseguirá escolher, pela primeira vez em liberdade, com pleno conhecimento de causa, o seu próprio caminho: o trabalho, a comunidade, a família – assumindo-se como incapaz de contemplar o impiedoso sol da verdade. Quanto a Friedrich, confessando que, por vezes, teria gostado de se acolher a uma sombra apaziguadora, prosseguirá o seu doloroso percurso até à loucura, num mundo onde Deus morreu, mas já exilado das traições de Lou e Paul. «Não pertenço a nenhum lugar. Não tenho nenhum lar, nenhum círculo de amigos, nenhum armário cheio de pertences, nenhuma família em torno da lareira. Nem sequer tenho uma pátria, pois abri mão da minha cidadania alemã.» E gerará, entre lágrimas, um filho, seu único filho, «o homem mais solitário do mundo, cuja única companhia será uma águia»: Zaratustra.
Irvin D. Yalom, «Quando Nietzsche Chorou», Saída de Emergência, 2006, 319 páginas