Caminhos de heterodoxia
António Rego Chaves
O século XIX, como salientou Pedro Calafate na «História do Pensamento Filosófico Português», «abre uma fase que poderíamos considerar marcada pela heterodoxia, pelo distanciamento perante o catolicismo que nos séculos anteriores e até à primeira metade de Oitocentos havia marcado a cultura portuguesa, ou pela distinção, como sucede com Antero, entre o cristianismo e o catolicismo, apresentando aquele como um sentimento, tão característico da sua tendência para acentuar o sentimento moral, e este como uma instituição fria e descaracterizada.» Manuel Cândido Pimentel recupera aqui os textos com que colaborou na referida obra, dedicados a Amorim Viana, Antero de Quental, Cunha Seixas, Domingos Tarrozo e Leonardo Coimbra, acrescentando-lhes estudos consagrados, entre outros, a Teixeira de Pascoaes, José Marinho, Afonso Botelho, Agostinho da Silva, Vergílio Ferreira, Pinharanda Gomes e ao brasileiro Miguel Reale, porque, segundo considera, este «se integra no espírito do pensamento português».
Esclarece o autor, no prefácio que redigiu para «Razão Comovida»: «Talvez seja arriscado defender que este livro, por conter textos escritos em diferentes momentos e circunstâncias, desenvolve uma tese sobre a forma e modos como o pensar filosófico de língua portuguesa tem abordado, justificado, criticado e repudiado, da tradição mais remota à contemporaneidade, os paradigmas da razão e do racionalismo da filosofia ocidental. A tese existe e está gravada no título ‘Razão Comovida.’»
As muito firmes convicções do ensaísta são assim expostas: «Entre nós, sobretudo a partir do século XIX até data recente, filósofos como Antero de Quental, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, José Marinho, Afonso Botelho, Agostinho da Silva e Joaquim Cerqueira Gonçalves mediram, pesaram e reflectiram a estreiteza, a precariedade e a insensatez dos modelos do racionalismo, fosse nos exemplos consagrados do cartesianismo, do kantismo e do idealismo alemão, fosse no empirismo, materialismo, positivismo, cientismo e tecnicismo. O que interessa reter da problemática e crítica dos modelos racionalistas, no que respeita à tradição do pensamento português dos séculos XIX até ao presente, é exactamente isto: uma reinterpretação global das possibilidades e limites dos paradigmas da razão pela sua reavaliação metafísica e ontológica à luz da existência, do mistério do ser, da experiência estética e ética, e da experiência religiosa.»
Pretende-se assim limitar a «comoção» da razão metafísica ao âmbito quase exclusivo, não da fé ou da mística, mas da religião cristã, mesmo católica, enriquecendo-se talvez a razão mas empobrecendo-se a comoção; em nome das conhecidas insuficiências da razão, (re)abrem-se as portas da nossa filosofia actual a dogmas da teodiceia cimentados na Idade Média.
Seja. Mas recorde-se um único exemplo, decerto o mais notável, de «razão comovida» – Antero de Quental. Sabe-se – como acentuou Joel Serrão – «que a reflexão sobre a morte, pelo menos, desde de cerca de 1874-1875, é um dos vectores fundamentais» das sua preocupações. Assim falava o poeta e filósofo em 1875: «Só quem teme o Não-ser é que se assusta/Com o teu vasto silêncio mortuário,/Noite sem fim, espaço solitário, /Noite de Morte, tenebrosa e augusta…» (…) «A mim seduz-me a paz santa e inefável/E o silêncio sem par do Inalterável,/Que envolve o eterno amor no eterno luto.» Que nos é dado ouvir aqui? Uma razão que se comove? Uma comoção que se racionaliza? Dando a palavra a Antero acerca do seu texto: «Fui teólogo e não romântico – pelo menos, tal foi a minha intenção.»
Mas que importa, tanto tempo depois, a intenção? A pergunta será sempre: trata-se de um fragmento poético, filosófico, teológico? E quando, em «A Bíblia da Humanidade de Michelet», Antero escreveu o seguinte: «’Dentro do homem existe um Deus desconhecido: não sei qual, mas existe’ – dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos da fé lia no horizonte anuviado das visões do profeta esta outra palavra de consolação – dentro do homem está o reino dos céus»? Fez um texto poético, filosófico, teológico?
Esse Antero que se sentia «atacado da náusea da realidade», que ousava confidenciar a um amigo que «os homens são ainda o melhor que podem ser, atenta a sua natureza bestial» e que «o darwinismo é uma grande fonte de consolação filosófica», enunciando assim a razão pela qual o «homo sapiens sapiens» é o que é, e não o que se desejaria que ele fosse, ocupará ainda de pleno direito um lugar na história do nosso pensamento filosófico?
A resposta está desde sempre dada, e não temos razão nem comoção que repudie a nossa razão comovida e a nossa comoção racionalizada. Somos o que somos – e é bem certo que nunca nasceu por aqui um Descartes, um David Hume, um Hegel. Não conseguimos exportar ideias «puras», aliás sempre contaminadas pelo espaço aonde surgem. Pois que teria sido de um Descartes sem a «ratio studiorum» do colégio jesuíta de La Flèche, de um David Hume sem as prolongadas estadas em Paris, Reims e, também ele, em La Flèche, de um Hegel sem Tübingen? Por cá tivemos de nos governar com o que estava à mão de semear – a Universidade de Coimbra e os livros em pacotes que iam chegando do Norte da Europa, por caminho-de-ferro…
Bem pôde Antero estudar Leibniz, Hume, Kant, Hegel, Schelling, Spencer, Comte, Michelet, Proudhon, Taine, Hartmann, tudo o que lhe oferecia o comboio: a angústia de existir que trazia dentro de si sobrepor-se-ia a tudo o resto, até à vontade de sobreviver. E, em matéria de metafísica, pouco mais nos legaria a sua heterodoxa «razão comovida» do que a irónica conclusão do soneto «O convertido»: «Amortalhei na Fé o pensamento,/E achei a paz na inércia e esquecimento…/Só me falta saber se Deus existe!»
Manuel Cândido Pimentel, «Razão Comovida», Imprensa acional- Casa da Moeda, 2011, 472 páginas