António Rego Chaves
Não tem sido fértil no Ocidente o diálogo entre ciência e religião, talvez porque os cientistas persistem em estribar-se no empirismo e no racionalismo, enquanto os religiosos não cessam de argumentar com as «verdades eternas» da fé e da revelação. Albert Jacquard (geneticista, catedrático, cidadão do mundo em luta pela justiça social, autor de «O Elogio da Diferença», «Eu e os Outros», «Acuso a Economia Triunfante»), talvez não escapasse a mais um estéril monólogo se, como revela logo no início de «Dieu?», não tivesse sido educado na religião católica romana, que lhe emprestou «o conforto das suas certezas». No entanto, o cientista acabará por se assumir como agnóstico, repudiando os dogmas do Credo. É essa profissão de fé que disseca neste livro, palavra a palavra, com a persistência própria de quem se exige raciocínios rigorosos. Nem «a insuportável certeza da morte» o detém, recusando refugiar-se no «ninho securitário de convicções» que seria a crença numa vida eterna.
«Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra;»… Mas, pergunta o cientista e ex-católico, será que estamos perante uma religião monoteísta quando nos falam da «Santíssima Trindade»? Será que ninguém se apercebeu ainda de que atribuir um sexo a Deus é uma blasfémia? Será que o crente, quando implora algo ao «todo-poderoso», não está a pedir-lhe, nem mais, nem menos, que repudie a «ordem» por Ele próprio estabelecida e pela qual Ele é o único responsável? (...) «Dentro de cinco mil milhões de anos, o Sol terá quase esgotado as suas reservas de hidrogénio e entrará num processo que conduzirá à sua implosão; mas a Humanidade terá desaparecido muito antes…» Depois do «big bang», o «big crunch». Que sentido faz, então, continuarmos a falar de um omnisciente e benévolo Criador do Céu e da Terra?
…«e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor,»… Que significa crer em Jesus Cristo? Não pôr em xeque os factos narrados nos Evangelhos sinópticos? Aceitar a Sua mensagem? No primeiro caso, há que afirmar sem rodeios que a resposta, mesmo quando negativa, «deixa intacto o conteúdo da verdadeira mensagem cristã». No segundo, o relevante é «aderir às ideias que Jesus expressou» e assumir todas as consequências que tal implica nas relações interpessoais. Isto supunha, há dois mil anos, não tolerar, por exemplo, o esclavagismo. Hoje, ainda que não possamos garantir que não subsistem, mesmo nas mais «civilizadas» sociedades ocidentais, formas subtis de escravidão, a mensagem cristã não deixou de ser «revolucionária», manifestando-se inconciliável com os hábitos «de domínio, de competição e de eliminação» na família, no trabalho e nos regimes políticos. «Seu único Filho, nosso Senhor?» Denuncie-se que, «depois de ter apresentado Deus como pai de todos os humanos, o Credo Lhe atribui um único filho». E registe-se que «assimilar Deus a um senhor parece tão redutor como assimilá-lo a um “bricoleur” que criou o universo só para se distrair».
…«que foi concebido pelo Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria;»… «Mais valia não evocar a suposta intervenção do Espírito Santo e a suposta virgindade de Maria. São episódios que nada têm a ver com o conteúdo da mensagem» de Jesus.
…«padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu aos infernos e ao terceiro dia ressuscitou dos mortos;»… Que quer isto dizer? Que, tal como todos os homens que morrem, Jesus foi obrigado a passar pela «morgue das almas», não beneficiando de qualquer privilégio. Ressurreição dos mortos? O Credo toca aqui no cerne do cristianismo, pois, sem a ressurreição, como salientou São Paulo, «é vã a nossa pregação, e vã é também a nossa fé». Que diz a física quântica capaz de nos interessar neste contexto? Que «a probabilidade de um acontecimento nunca é rigorosamente nula»; mais, que a «palavra “impossível” não pode, portanto, ter um sentido absoluto». Aqui se abriria, pois, um reduto para a inserção do «mistério da fé», independente de qualquer raciocínio, ainda que a razão julgue a ressurreição «inacreditável» e tenha concluído que não lhe é permitido considerá-la «possível». Em qualquer caso, porém, fica de pé a sublime lição de Jesus, «amai-vos uns aos outros».
…«subiu aos Céus; está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, de onde há-de vir a julgar os vivos e os mortos.»… «A história humana reduzida a experiência de laboratório, onde os ratos são submetidos a um teste: saberão eles encontrar a saída do labirinto?» (…) «Poder-se-ia sonhar com uma finalidade mais grandiosa.»
«Creio no Espírito Santo; na santa Igreja Católica; na comunhão dos Santos; na remissão dos pecados; na ressurreição da carne; na vida eterna. Ámen.» Protesta Albert Jacquard: «É preciso uma certa dose de inconsciência à Igreja Católica para ousar qualificar-se de “santa” na mesma frase onde este adjectivo é utilizado para caracterizar o Espírito “Santo”». (…) «É certo que ela levou a cabo múltiplos prodígios, mas o mais notável foi conseguir existir há vinte séculos apesar dos seus erros e das suas torpezas», (…) tornando-se numa estrutura de poder que tem por finalidade essencial não desaparecer». Quanto à comunhão dos Santos, só pode traduzir-se pela adopção do programa de vida proposto pelo Sermão da Montanha: «Amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e vos caluniam.» (…) «Eu sou também os laços que teço com o que me rodeia, em primeiro lugar com os humanos; estou, entre eles, em comunhão.» (…) «A existência de uma comunidade humana, forma actual de nomear a comunhão dos santos, não é objecto de uma crença, é uma atestação. A questão importante é escolher um objectivo para orientar o seu comportamento.» (…) «Pascal propõe uma aposta a propósito de Deus; mas a verdadeira aposta diz respeito à nossa atitude a propósito dos homens. A indiferença, tal como a agressividade, não pode gerar senão catástrofes, a abertura confiante pode ser benéfica; porquê hesitar?» (…) «Como todas as evidências, isto já foi dito. Pois não é o tema central do Sermão da Montanha? Esse sermão não nos pede para acreditarmos na comunidade humana, propõe-nos construi-la e indica-nos como lá chegar. A via proposta é exactamente oposta à adoptada pela nossa cultura ocidental, cujo motor é a competição generalizada, a luta permanente.» Utopia? «Santa» utopia esta, que ousa «promover» o Sermão da Montanha à qualidade de programa político mundial, tendo como pano de fundo os inúmeros crimes que hoje estão a ser cometidos em nome do «Deus verdadeiro» e dos «direitos do Homem»…
Albert Jacquard, «Dieu?», Le Livre de Poche, Stock/Bayard, 2004, 157 páginas