António Rego Chaves
«Historicamente, o iberismo político começa a ter relevo quando à tendência centrífuga, que dominara durante a Idade Média, se subsistiu mais tarde a tendência centrípeta de Castela. Foi sempre um problema de letrados e de políticos, isto é, de homens que ambicionam fazer, dirigir ou explicar a história.» Com estas duas frases, terá Alberto Martins de Carvalho esgotado a temática da chamada «questão ibérica»?
O teólogo português António Jácomo apresenta-nos outras dimensões do problema, tornando-o bem mais complexo. Atento à «aspiração ideal à associação das diferentes tendências do pensamento na Península Ibérica», à «a-sistematicidade da racionalidade ibérica», às ideias de Antero de Quental e Oliveira Martins, à «heideggerização» da Hispânia, invoca em seu socorro a «indiscutível» sentença de Menéndez Pelayo: «Um povo novo pode improvisar tudo, menos a cultura intelectual. Um povo velho não pode renunciar à sua, sem extinguir a parte mais nobre da sua vida e cair numa segunda infância muito próxima da imbecilidade senil.»
O ensaísta recorda ainda as palavras de Unamuno, que aludia «à petulante soberba espanhola, de um lado, e à impertinente desconfiança portuguesa, por outra parte, como causas próximas do afastamento entre Espanha e Portugal». Referindo-se à velha querela da existência de «filosofias nacionais» – sem, aliás, se deter nas opiniões do Padre Manuel Antunes ou de Joel Serrão acerca do tema, ao contrário do que faz com pensadores ligados ao movimento da filosofia portuguesa, como Álvaro Ribeiro ou António Quadros – , sintetiza: «O que angustiou a filosofia alemã parece ter sido a problemática do ‘sistema’, entendido como algo de imperativo. Em contraposição, a filosofia inglesa, por exemplo, não tem qualquer preocupação com a ideia de sistema, parecendo apostar no conceito de ‘experiência’, entendida como vivência transmitida pela sensibilidade humana. Por seu lado, a filosofia feita em língua francesa pode ser considerada no âmbito do conceito de ‘razão’, entendida como dicotomia entre pensamento e extensão.» Lembra depois Ortega y Gasset: «Durante um século transplantámos para Espanha todas as tolices da França, da Inglaterra, da Alemanha e nenhuma da sua sabedoria: porque esta sabedoria é genuinamente francesa, inglesa ou alemã e por isso intransplantável.» E atinge assim o ponto fulcral da sua tese, que é demonstrar a especificidade histórica do pensamento peninsular.
Miguel Torga, talvez antes de qualquer outro intelectual português do século XX, parece ter encontrado a abordagem que nos pode conduzir a uma visão actual de um estimulante iberismo eurocéptico, encontrando uma substância telúrica comum no conjunto das nações peninsulares, «nações a que Castela, malgrado a sua paixão centrípeta, nunca conseguiu apagar o carácter, integrar na sua própria identidade». Escreveu no seu portentoso «Diário»: «Há no meu peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade Basca, dos perfumes do Levante e da luz da Andaluzia». (…) «Anestesiados previamente pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira.» Ninguém terá conseguido dizer tanto sobre nós em tão poucas palavras…
Estaremos perante um assimptotismo cultural, como pretende António Jácomo? Sim, se é verdade que, como escreveu Eugénio Montes, «Portugal e Espanha são nações paralelas e as paralelas só se encontram no infinito». E António Jácomo sublinha, em clara empatia com Miguel Torga, segundo o qual «a razão, ante a fúria arterial da vida, não passa de um intento falido»: «Um aspecto essencial do pensamento peninsular é que o dualismo existente no pensamento dito ‘europeu’, entre corpo e alma, sentimento e razão, não se encontra na nossa filosofia. A categoria grega da sabedoria, abandonada em nome de uma preocupação sistematizante, retoma sentido no quadro reflexivo ibérico. O pensamento ibérico assume, na nossa perspectiva, que a sua especificidade está em não se considerar uma ciência, aceitando assim transferir a sua ‘essência’ dos sistemas lógico-matemáticos ordenados para uma categoria aberta: a vida. O ‘plus’ do pensamento ibérico é que esta ‘vida’ é em si um saber, mas um saber a partir da própria vida, de onde deve brotar qualquer filosofia.»
No mesmo sentido se pronunciaram dois «grandes de Espanha». Ortega: «O humano escapa à razão físico-matemática como a água por uma canastra.» Unamuno: «Compreendi, mais uma vez, que a filosofia portuguesa – e creio que também a espanhola – é poética e só no verso pode expressar-se adequadamente. O melhor que temos em Espanha em mística – a nossa filosofia – são os cantares de S. João da Cruz, muito superiores ao seu comentário em prosa. A nossa filosofia é intuitiva e líquida, talvez gasosa, não petrificada em moldes.» De forma lapidar, o autor de «O Sentimento Trágico da Vida» caracterizou a antropologia ibérica afirmando que ela «pensa sentindo e sente pensando». Contudo, esta antropologia não se reduziria à Europa: a Espanha de que fala Unamuno não é uma Espanha territorial, mas «o nome de uma vasta e complexa área cultural e humana que abarca, para além de Espanha, Portugal e a América hispânica e lusitana.» (Ferrater Mora).
Afirma o autor que foi seu objectivo «desmontar a interpretação exclusivamente política com que o Iberismo nasceu em finais do século XIX e a sua interpretação economicista feita pelos tecnocratas do sistema actual», denunciando que, «para estes, mais importantes que os fundamentos espirituais e culturais dos povos são a balança comercial e os ‘nichos de mercado.’» Assevera, depois, «a preexistência geográfica e histórica de um peculiar tipo de relacionamento ibérico que moldou mentes e espíritos.» É discutível o que consegue provar. Mas a tentativa terá o mérito de incitar cada um a procurar a sua verdade, sem esquecer que Tertuliano, Santo Agostinho, Pascal, Rousseau ou Kierkegaard, que tão profundamente influenciaram o sentir e o pensar de D. Miguel de Unamuno, nada, mas mesmo nada, tinham de ibérico…
António Jácomo, «O Édipo Iberista», Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 390 páginas