António Rego Chaves
Escreveu Winston Manrique em artigo recente publicado no jornal «El País»: «O boom não foi o big bang. Antes de Vargas Llosa, Fuentes, Cortázar e García Márquez (protagonistas do fenómeno literário dos anos sessenta, segundo José Donoso) a América Latina já possuía uma literatura e uns nomes próprios que a tinham renovado. A morte do paraguaio Augusto Roa Bastos, no passado dia 26 de Abril, recordou as vésperas daquela glória internacional que também serviu para redescobrir esses autores germinais, ainda que num segundo plano de popularidade. Com excepção de Jorge Luís Borges e Juan Rulfo, cuja força e acolhimento foram tão grandes que adquiriram brilho próprio.» E evoca alguns escritores hoje muito lidos em Espanha, como Asturias, Carpentier, Onetti, Donoso, Uslar Pietri, Arlt, Bioy Casares e Roa Bastos, salientando que «o caso de Ernesto Sabato é diferente porque já era conhecido na Europa, o que o permite incorporar-se no boom, como ocorreu com Donoso».
De facto, o argentino Ernesto Sabato, nascido em 1911, doutorado em ciências físicas e matemáticas, recebeu em 1938 uma bolsa para estudar radiações atómicas e trabalhou em Paris no Instituto Curie, convivendo, à noite, com Tristan Tzara, André Breton ou Roberto Matta. Em 1945 decidiu consagrar-se por inteiro à literatura, publicando o ensaio «Uno y el Universo». Surge depois com «El Túnel» (1948), romance que será saudado como uma obra-prima por escritores como Albert Camus, Graham Greene ou Thomas Mann. A seguir, «Sobre héroes y tumbas» (1961), «Abaddón, el exterminador» (1974) ou «Antes del fin» (1999) farão aumentar o número dos seus admiradores incondicionais, reforçado pela sua nomeação e acção como presidente da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, que emitiu o relatório «Nunca Mais» (1984) acerca das atrocidades praticadas durante a ditadura militar encabeçada pelo general Videla.
José Saramago, durante a homenagem que foi prestada a Sabato no III Congresso Internacional da Língua Espanhola (Novembro de 2004), afirmou ter descoberto no escritor argentino «um autor trágico e ao mesmo tempo eminentemente lúcido, que, além de ser capaz de abrir caminhos por corredores labirínticos do espírito dos leitores, não lhes consentia, nem sequer durante um só instante, que desviassem os olhos da esquina mais obscura do ser.» Tal «esquina» está bem patente no seu último livro, publicado em finais do ano passado com o título «España en los diarios de mi vejez». Sabato afirma aí que este texto expressa «algo do que sente um homem no iminente limiar da morte». Em «Resistir» (tradução portuguesa adoptada para «La resistencia» (2000), vá-se lá saber por que subtil critério comercial, gráfico ou político), a ideia da proximidade da morte pulsa em toda a obra, mesmo quando só a podemos detectar nas entrelinhas. Porque o escritor e humanista pretende alertar-nos, enquanto ainda sente ter tempo, para o execrável futuro que nos espera se não tomarmos consciência de que (sobre)vivemos em cidades ocupadas pelo invasor, onde este assume múltiplas faces: a omnipresente televisão, moderno «ópio do povo», os ruídos fúteis que nos impedem de dialogar uns com os outros, o trabalho de sol a sol, os entardeceres em filas de automóveis e transportes públicos, no regresso a casa, tão estranhos à magia do Angélus de Millet, o autismo, o telefone e o computador, o abandono na velhice, a morte solitária, longe dos que nos são queridos, no hospital asséptico, esterilizado, frigorificado.
Que fazer? Sabato responde, determinado: resistir, resistir sempre e sempre ao ocupante, se necessário de armas na mão. Mas que armas temos nós? Ora, as armas de quem aposta na comunicação entre as pessoas, na dignidade humana, na liberdade, na honestidade, na honra, no respeito pelos outros, na solidariedade. Pobres armas, esses solenes imperativos categóricos sem qualquer cotação na bolsa de valores onde tudo se troca, se compra e se vende pela melhor oferta...
Numa época em que «a primeira mensagem que a escola e a televisão imprimem na alma da criança é a competição – uma guerra não armada –, a vitória sobre os seus companheiros, o mais enfático individualismo, ser o primeiro, o ganhador», que esperar? Uma grande confusão, sem dúvida, porque não é honesto ensinar a um tempo cristianismo e competição, individualismo e bem comum, perorar sobre a solidariedade e incitar os jovens a abandonar todos os escrúpulos na batalha pelo êxito escolar e profissional.
Idolatria da técnica, exploração do homem, eis o beco onde nos encontramos, aparentemente sem saída. «Salve-se quem puder» é a palavra de ordem. Milhões e milhões de modernos servos da gleba em todo o mundo condenados a trabalhar dez a 12 horas por dia nos campos, nos escritórios e nas fábricas, gente desempregada, excluída, sem lar, sem assistência médica, sem ensino. Vamos cruzar os braços, ser cúmplices de um sistema que legitima a morte silenciosa? Resignar-nos-emos a ser assessores dos carrascos, será que julgamos não ter deveres para com os nossos semelhantes privados de voz?
«Já não sabemos rezar, porque perdemos o silêncio e também o grito.» Onde encontraremos forças para resistir ao capitalismo selvagem que a todos nos envolve, molda, determina? «Se, apesar do medo que nos paralisa, voltássemos a ter fé no homem, tenho a convicção de que poderíamos vencer o medo que nos paralisa como se fôssemos cobardes.» Cobardes, sublinhe-se, «domesticados na obediência a uma sociedade que não respeita a dignidade humana.» Defendamos, então, sustenta o cidadão do mundo Ernesto Sabato, «como fizeram heroicamente os povos ocupados, a tradição que nos diz quanto de sagrado tem o homem».
E, a concluir, qual profético telegrama enviado ao futuro: «Salvar-nos-emos pelos afectos.» Pelos afectos? Assim mesmo, pelos afectos, sem mais nem menos esperança, desejo ou sonho do que os de cumprirmos lado a lado, na Resistência e para além dela, um destino humano, verdadeiramente humano.
Ernesto Sabato, «Resistir», Publicações Dom Quixote, 2005, 130 páginas