António Rego Chaves
Será a China um país comunista? O mito persiste para muitos – e não apenas para os antigos fanáticos do Movimento das Cem Flores (1957), do Grande Salto em Frente (1959-1962) e da Revolução Cultural (1966-1979), como se as ideias de Mao Zedong ainda continuassem a guiar a política de Pequim. A verdade é bem diferente: o Império do Meio não se transformou em democracia parlamentar, isso é certo, mas já nada tem a ver com o comunismo. O regime hoje instalado na China só pode ser classificado como uma brutal ditadura de um dos mais selvagens capitalismos alguma vez conhecidos. Pena que grande parte dos «media» insista em falar-nos do actual «comunismo chinês», induzindo em erro quem neles confia para formar uma ideia sobre como vivem os 1,3 mil milhões de habitantes do país.
Especialista de política internacional, o jornalista Thierry Wolton diz-nos pretender denunciar neste seu livro «o grande bluff chinês» – político, económico, comercial, social e pacífico. Escreve o autor: «Quando Pequim publica, em Outubro de 2005, um livro branco sobre ‘A Construção da Democracia Política na China’, ninguém lhe dá atenção. Este texto-programa recorda, no entanto, alto e bom-som, o papel do partido comunista como ‘vanguarda do povo’, o único capaz de garantir ‘a estabilidade politica, o progresso económico e a defesa dos interesses nacionais’. O opúsculo apregoa a democracia ‘made in China’, mais representativa do que qualquer outra, segundo ali se lê, graças a esse partido que tem por missão defender os interesses de todos. Esta propaganda grosseira, de outros tempos, tem tão pouco a ver com a formidável transformação que agita o país que não justifica, seguramente, que nos detenhamos nela. Para nós, ocidentais, é mais tranquilizador pensar que aquele texto se destina a uso interno, com o objectivo de sossegar um exército de ‘apparatchiks’ ultrapassado por uma ‘revolução capitalista’ que varre tudo à passagem, incluindo os seus privilégios.» (…) Em boa verdade, «o credo político dos dirigentes chineses reduz-se agora à taxa de crescimento.» Na China actual, não há dirigente ‘new look’ que se atreva a usar «palavrões» como luta de classes, exploração dos trabalhadores, imperialismo norte-americano. «Os conselhos de administração das grandes empresas substituíram os sovietes locais de outrora.» (…) «O Partido Comunista Chinês está obeso, paralisado por moléstias, marginalizado, abandonado pelos capitães da indústria que são as forças vivas do país. Os que fazem negócios com Pequim podem ficar descansados: o comunismo deixou de ser um espectro que atormenta a China.»
Iniciada por Deng Xiaoping no início da década de 1990, a «revolução capitalista» chinesa, assente na obsessão do «aumento das forças produtivas», conduziria quase em linha recta – dizemos «quase» devido aos persistentes efeitos da sangrenta repressão de estudantes dissidentes ocorrida em 1989 na Praça de Tiananmen – à formação de uma casta privilegiada cujo núcleo é constituído pela maioria dos 68 milhões de militantes do chamado Partido Comunista Chinês, dos 70 milhões de membros da Liga das pretensas Juventudes Comunistas, por dezenas de milhões de militantes das «organizações de massas» e por três milhões de militares e elementos das forças policiais. Acresce que «as estratégias orquestradas por Deng Xiaoping para modernizar o sistema conduziram a inúmeros casos de sucessão hereditária, que colocaram os dirigentes directos, ou adoptivos (e colaterais) dos líderes históricos no centro de política de modernização. São os chamados ‘taizi’, os príncipes herdeiros.» (…) «A geração actual dos ‘príncipes’ corresponde à fina-flor dos tecnocratas do partido: vivem com desafogo ou são ricos, diplomados por uma universidade chinesa de prestígio e uma faculdade americana, especialistas num domínio político específico, perfeitamente adaptados ao pensamento internacional contemporâneo». (…) «Nenhuma grande empresa, ou quase, escapa ao controlo das mil famílias comunistas (talvez mais) que se apoderaram abusivamente do país e fizeram dele sua propriedade, inspirando-se num social-confucianismo que se tornou a característica essencial do poder na China.» (…) «A difícil formação de uma classe média, bem como a inexistência de uma classe em ascensão, são a consequência desta confiscação dos poderes por uma clique.»
A corrupção generalizada dos poderosos, o férreo controlo exercido sobre a população, os milhares de condenações à morte todos os anos, os trabalhos forçados, a ausência de liberdade de expressão, a inexistência de liberdade sindical, a arbitrariedade da polícia secreta, a repressão cega, o desprezo pela vida humana – tudo isto contribui para que classifiquemos o actual regime de Pequim como uma feroz ditadura. Afirmar, como faz o autor depois de enumerar estes factos, que a China da descolagem económica não é menos comunista do que anteriormente, porque o desenvolvimento das forças produtivas é a justificação principal do marxismo, não constitui apenas um erro crasso – evidencia também, seja uma indesculpável ignorância do conceito de relações de produção, seja uma intolerável manifestação de desonestidade intelectual.
Se o objectivo de Marx era acabar com «a exploração do homem pelo homem» e a China, com o seu extraordinário crescimento, está a enriquecer cada vez mais os ricos e a empobrecer cada vez mais os pobres, como sustentar que estamos perante um regime comunista? Quem concebe um país comunista, próspero do ponto de vista macroeconómico, em que os direitos à saúde, à habitação e à educação estão longe de estar generalizados, com 10 milhões de mendigos, 11 milhões de subalimentados, 150 a 200 milhões de sem-abrigo, uma taxa de desemprego entre os 12 e os 30 por cento e 100 a 150 milhões da população activa privados de segurança social e reforma, a trabalhar mais de 14 horas por dia? Isto é puro e duro capitalismo, aliás escorado nos países «ricos» ocidentais e suas multinacionais, mesmo que o Estado chinês detenha a propriedade dos meios de produção. O resto não passa de propaganda anticomunista.
Thierry Wolton, «O Grande Bluff Chinês», Bizâncio, 2008, 156 páginas