António Rego Chaves
Três anos após a queda de Bagdad, a revista «L’Histoire» faz o balanço da Guerra do Iraque que, tal como a segunda metade do século XX ficou marcada pela da Coreia, do Vietname ou do Golfo, assinalou o início da barbárie no século XXI. Sabido hoje de ciência certa que a invasão assentou numa grosseira falsificação dos factos, pois nunca existiram no Iraque armas de destruição maciça e jamais se demonstrou a menor cumplicidade entre Saddam Hussein e a Al-Qaeda nos atentados de 11 de Setembro de 2001, e revelado que o Pentágono preparou durante dez anos a intervenção e ocupação militar pelos EUA, é legítimo perguntar se a pretensa «guerra missionária» visando exportar a panaceia democrática para o Médio Oriente terá sido mais do que uma «guerra do petróleo». Talvez a resposta deva ser aqui e ali matizada – mas as razões descortináveis tenderão sempre a situar-se no plano geoestratégico, ressuscitando um mítico «perigo amarelo» chinês ou um abominável «papão» instalado nas estepes russas e perfilando-se por via de regra nos antípodas das preocupações humanitárias.
Em boa verdade, será que o «imperador» Bush II esperava que a queda de Saddam Hussein provocasse um efeito de «contágio democrático» no Irão, na Síria e em todo o Médio Oriente? Será que os oito países europeus que apoiaram a Administração norte-americana sem o aval da ONU (Grã-Bretanha, Espanha, Itália, Polónia, Dinamarca, Hungria, República Checa e…o Portugal de Durão Barroso) não se aperceberam de que estavam a ser simples marionetas do «Novo Império»? Será que as tropas ocidentais ocupantes não previram que se arriscavam a desencadear a resistência islâmica no Iraque ou uma guerra civil entre sunitas e xiitas apoiados pelo Irão? E, enfim, será que os superdotados cérebros do Pentágono não conceberam que uma agressão contra o Iraque estimularia um país vizinho como o Irão a fabricar armas nucleares, preparando-se «para o que desse e viesse» das bandas de Washington?
Hubert Védrine, ministro dos Negócios Estrangeiros no Governo de Lionel Jospin, embora considerando legítima a intervenção no Koweit em 1991 (com o objectivo declarado de expulsar o invasor iraquiano), tal como a acção militar no Afeganistão após o 11 de Setembro (com o aparente fim de desmantelar a Al-Qaeda), lamenta que os EUA, logo a seguir, não tenham encorajado o processo de paz israelo-palestiniano, o que lhes teria dado «uma autoridade e uma legitimidade muito mais consideráveis». E adverte: «No Iraque, a evolução do país pode influenciar tanto a economia do mundo como a estabilidade do conjunto da região. Uma retirada total dos americanos não pode ser encarada senão se existir em Bagdad um regime seguro, que não ameace Israel, que garanta o acesso ao petróleo e que não procure aproximar-se do Irão…»
É certo que milhões de iraquianos, entre xiitas e curdos, não têm motivos para lamentar o fim da tirania de Saddam Hussein. No entanto, como escreve o antropólogo Hosham Davod, os norte-americanos, ao destruírem o conjunto das estruturas do Estado, criaram um «vazio perigoso» e «um clima de insegurança mantido pelas presença dos gangues, das milícias e uma economia mafiosa. Um caos onde a democracia, na ausência de democratas, corre o risco de ter dificuldade em triunfar.»
Será que a América não estará outra vez a deixar-se envolver num sangrento atoleiro, como há mais de 40 anos ocorreu no Vietname, onde também não faltaram as pequenas e as grandes carnificinas, as execuções sumárias e a prática sistemática da tortura por militares? Só que os EUA não podem, agora, dar-se ao luxo de repetir os erros que culminaram, em 1975, com a grotesca debandada de Saigão, oferecendo de bandeja um país inteiro ao inimigo, que neste caso seria o Irão ou a Al-Qaeda…
Aliás, seria bom não confundir «democracia» com repúdio do Islão. Como fazia notar na semana passada, no jornal «El País», Anwar Ibrahim, catedrático da Universidade de Georgetown em Washington, «os recentes êxitos eleitorais islamitas no Irão, no Egipto e nos territórios palestinianos colocaram dúvidas sobre a capacidade de as forças liberais triunfarem contra o fundamentalismo. Para os Estados Unidos, o temor é real, ainda que talvez esteja marcado por alguma islamofobia: que terrível ironia seria que esse grande esforço para propagar a liberdade no estrangeiro permitisse que os Estados islâmicos anti-estado-unidenses impusessem a ‘sharia’ ou lei islâmica aos seus povos…» E acrescentava: «De certo modo, a estratégia de Washington pode ser encarada como uma expiação dos pecados do passado, quando os Estados Unidos eram um escolho para a democracia no Médio Oriente. O Irão era uma democracia em 1953, quando a CIA urdiu o golpe de Estado que o transformou numa monarquia absoluta. Os Estados Unidos também apoiaram outros tiranos na região, incluindo, como é bem sabido, Saddam Hussein, tudo isso em nome da estabilidade e da segurança no confronto com o bloco comunista, que durou várias décadas. Estará Washington realmente encalhado entre a Cila de apoiar ditadores e o Caríbdis de fomentar democracias que poderiam levar ao poder radicais islamitas?»
Com 2300 soldados já mortos no Iraque e outros 140 mil envolvidos numa opção economicamente ruinosa e sem qualquer saída militar ou política à vista no terreno, Washington não vislumbrará agora outra forma de abandonar o seu novo Vietname senão mergulhando ainda mais fundo no atoleiro onde se meteu, isto é, atacando o Irão e desestabilizando o seu regime? Ao classificarem Teerão como a «ameaça principal», fazendo crer que o seu programa nuclear se encontraria de facto muito mais adiantado do que efectivamente se encontra, ou ao não excluírem o uso de mísseis e de armas atómicas para destruir alvos dissimulados a mais de 20 metros de profundidade, talvez os actuais dirigentes neoconservadores norte-americanos estejam implicitamente a reconhecer que a vitória dos EUA no Iraque e no Afeganistão depende do que vierem a fazer no Irão. E a anunciar ao mundo islâmico que se prepare para novos infernos.
«L’Histoire», «Les Origines de la Guerre d’Irak», Abril de 2006, 98 páginas