António Rego Chaves
Não será esta uma das obras fundamentais de Miguel de Unamuno (1864-1936), para colocar a par de «Do Sentimento Trágico da Vida» ou de «A Agonia do Cristianismo». Contudo, «Por Terras de Portugal e de Espanha» tem para nós a incomparável atracção de falar do País onde nascemos em termos de empatia que, segundo julgamos, nunca foram sequer igualados por qualquer dos estrangeiros de destaque que sobre nós se debruçaram.
Produto de viagens por terras ibéricas, entre 1907 e 1909, do «Reitor perpétuo» da Universidade de Salamanca, a obra possui o encanto de nunca se ficar pelo superficial, passando das cidades e das suas gentes à natureza para, de chofre, mergulhar na intensa vida interior do próprio Unamuno. O viajante recolhe-se então aos abismos do seu Eu – e a «paisagem» de que o leitor desfruta não constitui, sem dúvida, o menor dos fascínios deste livro.
Deixemos Barcelona, Guadalupe, Ávila, a Galiza, as Canárias ou Trujillo – e vejamos o que o grande basco nos diz de Portugal, de nós e de alguns dos nossos maiores. Porque, se há um país que Unamuno encara com alguma perplexidade («esse belíssimo e desgraçado Portugal que, desde o dia lúgubre de Alcácer-Quibir, parece viver vagamente submerso em sonhos de grandeza passada»), um povo que parece mergulhado no «culto da dor», marcado pelo «desespero» e pelo «desalento», existem também alguns homens que, pelo seu talento ou pelo seu génio, mas sobretudo pela sua autenticidade, considera seus pares no sentir e no pensar. De Garrett e Herculano a Eugénio de Castro e Teixeira de Pascoaes, passando por João de Deus, Antero de Quental («uma das almas mais atormentadas pela sede de infinito, pela fome de eternidade») ou António Nobre («desespero resignado» ou «resignação desesperada»), sem esquecer Oliveira Martins, Eça, Camilo e Guerra Junqueiro, o pensador não poupa, com generosidade infelizmente pouco comum, lisonjeiras apreciações a autores portugueses. Não se esquece, porém, de perguntar a que se devia – e deve? – tão notório «afastamento espiritual» e tão escassa «comunicação de cultura» entre espanhóis e portugueses. E responde: «À petulante soberba espanhola, por um lado, e à mesquinha desconfiança portuguesa, pelo outro. O espanhol, sobretudo o castelhano, é desdenhoso e arrogante; e o português, tal como o galego, é desconfiado e susceptível. Aqui, é habitual desdenhar de Portugal e tomá-lo como alvo de chacota e de troça, sem o conhecer; e em Portugal até há quem imagine que os espanhóis sonham com conquistá-lo».
De visita à Guarda, em 1908, ocorre ao filósofo a seguinte reflexão, que bem merece ser ponderada: «Que terá este Portugal – penso eu – para assim me atrair? Que terá esta terra, por fora sorridente e branda, por dentro atormentada e trágica? Não sei; porém, quanto mais lá vou, mais desejo voltar. Cheguei a pensar se estes ocidentais de uma das extremidades não terão dado as mãos espiritualmente aos orientais da outra extremidade, aos da Índia, e não terão chegado ao cerne da sabedoria, ao entendimento da inutilidade final de qualquer esforço. Parece que ali pousou a lúgubre sabedoria do Eclesiastes [‘vanidade das vanidades, tudo é vanidade’]. Nesse povo triste, tristíssimo, as pessoas divertem-se, sem dúvida, mas divertem-se como se dissessem: vamos comer e beber, porque amanhã morreremos.»
Logo a seguir, surge-nos o texto «Um Povo Suicida», talvez o mais notável que o autor consagrou a Portugal. Vale a pena (re)lê-lo com toda a atenção, pois Unamuno, desta vez em Lisboa, persiste em glosar o tema da nossa tristeza: «Portugal é um povo triste, até mesmo quando sorri. A sua literatura, inclusive a sua literatura cómica e jocosa, é uma literatura triste. Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida. A vida para ele não tem um sentido transcendente. Querem viver, sim, talvez; mas para quê? Mais vale não viver.» E evoca os suicídios de Soares dos Reis, de Camilo, de Mouzinho de Albuquerque mas, em primeiro lugar, o de Antero, que dorme para sempre «com seus irmãos Obermann, Thomson, Leopardi, Kierkegaard», para perguntar: «E digam-me: a morte de Buiça, não foi em rigor um suicídio? (…) Não acham que é mais do que uma ‘boutade’ o que alguém disse: que o rei D. Carlos foi [também] um suicida, que Buiça o suicidou?» Transcreve, depois, uma longa carta recebida do seu amigo Manuel Laranjeira que, em 1912, também se viria a suicidar.
Carta esclarecedora, na qual o ainda hoje injustiçado escritor português afirmava: «O pessimismo suicida de Antero de Quental, de Soares dos Reis, de Camilo, mesmo do próprio Alexandre Herculano (que se suicidou pelo isolamento como os monges) não são flores negras e artificiais de decadentismo literário. Essas estranhas figuras de trágica desesperação irrompem espontaneamente, como árvores envenenadas, do seio da Terra Portuguesa. São nossas: são portuguesas; pagaram por todos, expiaram a desgraça de todos nós. Dir-se-ia que foi toda uma raça que se suicidou. Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada – o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.» (…) «Crer! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeito é a crença – na morte libertadora. A Europa despreza-nos; a Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa, prática e egoísta, detesta-nos, como se detesta gente sem vergonha, sobretudo… sem dinheiro.» (…) «Às vezes, em horas de desânimo, chego a crer que esta tristeza negra nos sobe da alma aos olhos; e, então, tenho a impressão intolerável e louca de que em Portugal todos trazemos os olhos vestidos de luto por nós mesmos.»
Pergunta o pensador, referindo-se ao povo português: «Hoje, que lhe resta?» Pouco lhe restava, em boa verdade, além da grande esperança despertada pela República – logo desfeita por aquilo a que Unamuno chamaria, em 1935, o «fascismo de cátedra» do regime salazarista…
Miguel de Unamuno, «Por Terras de Portugal e de Espanha», Vega, 2009, 159 páginas