António Rego Chaves
Se alguma originalidade possui este livro – e decerto que a possui – é a de conseguir tratar a história académica por «tu», ao mesmo tempo que demonstra haver boas razões para desconfiar dela e não a tomar demasiado à letra. Isto porque quem está do lado da chamada «arraia-miúda» só tem de pensar que tudo também pode ser visto pelos olhos de quem é subjugado – e não apenas pelos dos que subjugam. Que não se atrevam a falar-nos de uma pretensa «objectividade histórica» todos que se abrigam sob as asas do Poder. E que se contenham quando nos falam da «História como ciência»!
Escrito por dois jornalistas de escrita honrada, este livro fala-nos menos de Sidónio Paes, cujo lamentável perfil político é bem conhecido (governou apoiado na extrema direita, formada por monárquicos, clericais e membros proeminentes da alta burguesia), de que do seu assassino, José Júlio da Costa. É bom que assim seja, porque cada vez mais a História tende a não ser apenas aquela que nos é narrada pelos ilustres vencedores ou pelos seus zelosos representantes e apologistas, dando voz a muitos anónimos vencidos. Pois não é verdade que José Júlio da Costa foi, à sua maneira, talvez pouco «ortodoxa», mas que nem mesmo um São Tomás de Aquino, angélico doutor do tiranicídio, se atreveria a vetar liminarmente, alguém que logrou dar pelo menos um fio de voz aos anónimos vencidos pelas forças da sociedade portuguesa que pretendiam, a todo o custo, voltar para trás, isto é, para os tempos ditatoriais de João Franco ou de Pimenta de Castro, chocando os ovos donde sairia o melífluo soba de Santa Comba?
Alberto Franco e Paulo Barriga vão, no entanto, bem mais longe. Numa «reportagem» publicada noventa anos depois do assassínio de Sidónio Paes, contam-nos toda a história: partem do Alentejo dos inícios do século XX, falam-nos das suas gentes e dos seus problemas e, como se tivessem lá estado, eles que, hoje, ainda nem cinquenta anos têm, vibram com o que ao longe descortinam, avaliam, interpretam. Eis uma obra que possui o raro mérito de ser, além de proba, no melhor sentido, jornalística, isto é, viva.
Escrevem os autores, na badana do livro: «Acreditaram que o futuro da sociedade passava pela eliminação da propriedade individual. Acreditaram que o futuro do próprio Homem passava pelo culto do nudismo, do vegetarianismo, da generosidade. Os libertários que em 1917 fundaram a primeira comunidade de anarquistas em Portugal, a Comuna da Luz, perto de Vale de Santiago, Odemira, acreditavam e fizeram as populações locais acreditar em novos amanhãs que cantam. E cantando vivas aos camaradas da Rússia se expropriaram terras e se colectivizaram celeiros durante a greve geral de Novembro de 1918. Um levantamento rural sem precedentes, que apenas terminou graças à mediação de um pequeno proprietário e popular marialva: José Júlio da Costa, o homem que propôs a paz aos sem-terra em troca da rendição imediata. Os sublevados de Vale de Santiago são, no entanto, deportados para Luanda, ao mesmo tempo que o negociador destinava cada uma das balas da sua Browning ao supremo responsável pela traição: Sidónio Paes.» Está tudo dito?
Está dito o essencial, isto é, que o «Presidente-Rei» não foi morto por um demente, nem por um bêbedo, nem por um fanático. Quem pôs termo à sua vida foi um homem honrado – pouco importa se era ou não marialva –, que respeitava a palavra dada e fora posto em xeque pelo incumprimento da palavra dada pelas autoridades políticas que governavam Portugal. Na sua óptica, não se vingou: «lavou a sua honra», ou seja, despegou-a da ganga politiqueira com que tentaram envolvê-la os «dezembristas», matando a tiro o seu carismático «chefe», Sidónio Paes, em plena estação do Rossio.
Foi a 14 de Dezembro de 1918. José Júlio da Costa chegara cinco dias antes a Lisboa, instalara-se no Hotel Internacional, na Rua da Betesga. Falara com Magalhães Lima, grão-mestre da Maçonaria. Estava decidido a acabar com a chamada «República Nova» dos sidonistas e do seu líder, o político que decapitara a «hidra democrática» e fizera de Afonso Costa o detido número 3307 do Presídio da Trafaria. Bastou-lhe uma única bala.
O mediador traído só achava possível reabilitar-se «extirpando o mal pela raiz». Os revoltados rurais de Odemira e do Vale de Santiago haviam sido, não deixados em paz, como as autoridades haviam prometido a José Júlio Costa, mas brutalmente agredidos e deportados para África. Homens sem honra não respeitaram o acordo celebrado e enxovalharam o seu nome. Só restava ao mediador traído actuar – e actuou mesmo, «fazendo justiça pelas suas próprias mãos». Matou o ditador, que era o Presidente da República.
Quando, em 1921, um jornalista do periódico anarco-sindicalista «A Batalha» lhe pergunta, na Penitenciária, se nunca sentiu remorsos, responde: «Qual! Matava-o uma segunda vez!» (…) «Lamento apenas não ter liberdade para agir, para actuar, porque sinto que, com a minha fé, o meu ideal, seria um forte obreiro na grande cruzada da renovação social.»
Era, de facto, como reconheceram três psiquiatras em 1921, partidário de «ideias de fraternização universal». Por isso justificava o assassínio de Sidónio Paes «pela necessidade de salvar um país e fazer triunfar princípios de libertação.» Em suma, considerava-se a si próprio um patriota. Isso bastou para que fosse enviado, «com toda a urgência e segurança», para Rilhafoles, o actual Hospital Miguel Bombarda. Medicina também obriga.
Durante a revolta de 19 de Outubro de 1921, em que são assassinados António Granjo, José Carlos da Maia e Machado Santos, um numeroso grupo de civis entra de roldão no Miguel Bombarda e liberta José Júlio da Costa. Só depois do malfadado golpe militar de 28 de Maio de 1926, em Janeiro de 1927, é recapturado, «esperando o julgamento público e justo que nunca chegaria.» (João Medina). Internado no Hospital Miguel Bombarda, morre em 16 de Março de 1946, com 53 anos. Segundo a autópsia, foi vítima de «esquizofrenia». Politicamente, não foi decerto a esquizofrenia que o vitimou, mas a ditadura que só em 1974 findaria…
Alberto Franco e Paulo Barriga, «O Homem que Matou Sidónio Paes», Guerra e Paz, 2008, 129 páginas