António Rego Chaves
No prefácio que escreveu para esta obra de Joana Lopes, ex-católica, ex-professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ex-militante da LUAR e do PRP/BR, lembra Pedro Tamen que, nos anos 1960, para alguns católicos portugueses, «ser católico não implicava apenas endossar um ideal confinado nas paredes dos templos, não se resumia ao cumprimento das virtudes teologais e dos preceitos eclesiais – antes apontava imperativamente para uma intervenção na vida da colectividade, para uma luta sem tréguas por valores de verdade, de liberdade, de justiça, valores (atenção!) que não eram sua propriedade enquanto cristãos, mas que, por serem cristãos, mais lhes cumpria promover». Quanto à autora, afirma que pretendia, como tantos outros «católicos progressistas» nos últimos anos da ditadura, «ajudar a Igreja a renovar-se e Portugal a sair do fascismo». A primeira tarefa estava à partida condenada ao malogro, como depressa se aperceberam os mais lúcidos, entre os quais Manuel de Lucena, ao alertar em 1969 para que «as relações entre a Igreja e a política, que há quem queira mudar, não são mudáveis. Todas as Igrejas são conservadoras em política, por definição». E acentuava que a oposição dos católicos não acolhia «nenhuma unidade política de envergadura», devido ao facto de assentar unicamente na oposição ao salazarismo e nas expectativas criadas por João XXIII.
Tinha sido imensa a esperança criada pelo Papa que, segundo Hannah Arendt, fora «um [verdadeiro] cristão no trono de São Pedro». As suas encíclicas, nomeadamente a «Pacem in Terris», passaram de mão em mão entre católicos e não católicos, numa época em que o Vaticano II permitiu olhar a Igreja que fora a de Pio XII (a de Trento e do Vaticano I), não já como um corpo monolítico pretensamente detentor da verdade absoluta, mas como um espaço de diálogo entre sensibilidades católicas ou entre estas e praticantes de outras religiões, agnósticos e ateus. Neste contexto, diz Joana Lopes, «surgem em Portugal alguns dos instrumentos mais importantes na luta dos católicos contra o fascismo: ‘O Tempo e o Modo’ e o ‘Direito à Informação’, em 1963, e a Pragma, em 1964.» Na impossibilidade de referirmos todos os clérigos, leigos e organizações na memória da autora, fixemo-nos nestes «instrumentos» antiditatoriais.
Criado por Nuno e Natália Teotónio Pereira, o clandestino «Direito à Informação» terá dezoito números até 1969, data em que deixou de ser editado, nele colaborando, entre outros, o então padre António Jorge Martins e frei Bento Domingues. A Guerra Colonial, a miséria em Portugal, a controvérsia sobre a viagem do Papa a Bombaim por ocasião do Congresso Eucarístico Internacional, as lutas estudantis, a Censura à Imprensa, o assassínio de Humberto Delgado, as cumplicidades entre a Igreja e o Estado Novo, os equívocos da ida de Paulo VI a Fátima ou as prisões e os presos políticos foram alguns dos muitos temas então proibidos abordados pela publicação.
A Pragma (Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária), criada sob o signo da «Pacem in Terris» e fundada por um grupo de católicos, com especial relevo para Mário Murteira e Nuno Teotónio Pereira, agregou, desde o seu início, não apenas intelectuais, licenciados e estudantes universitários, mas também proletários, nomeadamente dirigentes e militantes das organizações operárias da Acção Católica. Contaria com numerosos outros colaboradores católicos e não católicos, como João Salgueiro, Salgado Matos, Joel Hasse Ferreira, Rui Grácio, Nuno Bragança, João Gomes, o padre Manuel Antunes, frei Bento Domingues, Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas, Mário Soares, José Tengarrinha, Nelson de Matos, Emídio Santana, o reverendo Mário Neves (da Igreja Presbiteriana), Joel Serrão, João Bénard da Costa, Francisco Pereira de Moura, Alexandre Vaz Pinto, João Cravinho ou Mário Ventura. Em Abril de 1967 a sede da Pragma foi – obviamente – encerrada pela Pide, tendo a cooperativa sido dissolvida pelo ministro do Interior em Março de 1968, acusada de exercer «actividades lesivas do Estado e da Sociedade, bem como dos princípios em que assentam a ordem moral, social e política da Nação». Mas a Pragma continuou na Resistência ao salazarismo e não cessou de facto as suas actividades senão em 1972.
Na década de 60, a Livraria Moraes editaria duas revistas, «O Tempo e o Modo» e a «Concilium». A primeira, lançada por António Alçada Baptista, João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Nuno Bragança, Alberto Vaz da Silva e Mário Murteira, tornou-se numa prestigiada plataforma de diálogo entre intelectuais de esquerda, crentes e não crentes. Quanto à «Concilium», Revista Internacional de Teologia surgida em 1965, contava entre a sua direcção e corpo editorial nomes hoje tão célebres como os dos grandes teólogos Yves Congar, Hans Küng, Henri de Lubac e Karl Rahner. Nota a autora, salientando que a publicação se situou sempre «na linha da frente da teologia conciliar e pós conciliar»: «Uma das consequências mais relevantes do espírito do Vaticano II foi o facto de o conceito de Povo de Deus passar a ser o centro da vida cristã. De uma relação individual e intimista entre o crente e Deus, evoluiu-se para uma procura de ‘Deus nos outros’, numa perspectiva em que a comunidade foi tomando a primazia e em que, no limite, ocupou o lugar do próprio Deus.»
Convirá não esquecer, para entender a luta destes católicos contra a ditadura nos anos 1960, a desilusão provocada pela involução (sic) de Paulo VI em relação ao magistério de João XXIII. Apesar do seu tímido ecumenismo e da encíclica «Populorum Progressio» (consagrada à justiça social), Giovanni Montini seria lembrado sobretudo pela reaccionária «Humanae Vitae» (declarando imoral o uso de contraceptivos). O conservadorismo e o alinhamento com Salazar da grande maioria da hierarquia eclesial fizeram o resto: afastaram para sempre da Igreja Católica alguns dos seus mais válidos sacerdotes e leigos, bem como um incalculável número de jovens portugueses avessos a quaisquer ditaduras ideológicas, políticas ou religiosas. Toda uma geração indignada.
Joana Lopes, «Entre as Brumas da Memória», Ambar, 2007, 245 páginas