Paris, «cérebro» da Europa (A «Encyclopédie» de Diderot e d'Alembert)

António Rego Chaves

Reza o «Larousse», na entrada sobre a «Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers» que, «em 1745, o livreiro Le Breton confiou a tradução da ‘Cyclopaedia’ do inglês Chambers a Diderot». E que este, «auxiliado por d’Alembert, logo fez desta adaptação uma obra original». O primeiro volume de tal «revolução cultural» europeia surge em 1751, incluindo o célebre «Discurso Preliminar» onde aquele matemático esboça a história dos progressos do espírito humano.

Atacado por toda a ordem religiosa estabelecida, desde os jesuítas aos jansenistas, o empreendimento (sempre anticlerical, por vezes deísta, em não poucos artigos ateísta) beneficiou, porém, do precioso apoio de Madame de Pompadour e Malesherbes. Homens com a projecção de Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Helvétius, Condillac, d’Holbach, Quesnay ou Turgot deram a sua prestigiada colaboração escrita para que a obra ultrapassasse todos os obstáculos que teria de enfrentar. E, ainda que não fosse em certos aspectos um arauto de ideias revolucionárias – é incontestável, por exemplo, que está longe de existir coerência ideológica entre os seus mais de 200 colaboradores e que poucos seriam antibelicistas, anticolonialistas ou antiesclavagistas – anunciou a Revolução Francesa.

Como escreve Alain Pons, que escolheu as 175 entradas inseridas nestes dois livrinhos (aleluia, temos acesso, on-line, a toda a obra, nomeadamente graças à Universidade de Chicago), a Enciclopédia «não propõe utopias nem sonha com uma cidade ideal. Ela não crê na possibilidade da democracia, e se quer que o povo seja feliz, não pretende oferecer-lhe o Poder. Aquilo por que luta abertamente é uma modificação profunda das instituições do regime monárquico francês, incoerente e arbitrário, inigualitário e ineficaz, que a casta no Poder é incapaz de reformar segundo as exigências da razão». Na França de Luís XV, a lei censória tornar-se-á draconiana: «Todo o autor e todo o impressor de obras sediciosas são passíveis da pena de morte.» Ninguém ousa atacar em público a monarquia.

Contudo, como ensinaram a sucessivas gerações de franceses os «crónicos» compêndios de Albert Malet, «nunca a actividade intelectual da França foi mais intensa: Paris era no século XVIII o cérebro da Europa e a língua francesa uma espécie de língua universal». Acrescentavam: «Tinha-se admitido, até então, como verdades demonstradas e indiscutíveis, que o soberano recebia a sua autoridade de Deus, de que era o lugar-tenente na Terra; que, em consequência, tal autoridade devia ser absoluta e podia ir até dispor dos bens, da liberdade, da própria vida dos súbditos. Admitia-se que os homens tivessem direitos diferentes, que entre eles houvesse desigualdade, que uns fossem privilegiados enquanto os outros suportariam todos os encargos, conforme nascessem nobres ou plebeus; admitia-se, ainda, que todos os súbditos deviam pensar da mesma maneira sobre todas as questões essenciais, e que essa maneira de pensar, mais particularmente em matéria de religião, devia ser a do soberano: não devia haver senão uma religião no Estado.» Absolutismo, desigualdade e intolerância eram as palavras de ordem; os «philosophes» inscreveram a liberdade e igualdade na agenda do século. Claro que todos eles tinham lido e relido John Locke.

Mas não só: Montesquieu, em «L’Esprit des lois» (1748), inspirando-se na Inglaterra, preconizara a independência dos poderes legislativo, executivo e judicial, sustentando ser tal separação indispensável à liberdade. Voltaire adoptara «a Ilha» como exemplo («Lettres philosophiques ou Lettres sur les Anglais», 1734), louvando o país onde «o príncipe, todo-poderoso para fazer o bem, tem as mãos atadas para fazer o mal». E também ele seguia Locke: atacava a arbitrariedade, a intolerância religiosa, a autoridade do clero. Quanto a Rousseau, sabe-se quanto «Du Contrat social» (1762) ficaria a dever ao autor do «Ensaio sobre o Entendimento Humano». Não dizemos: um semeou, outros colheram os louros. Só: «o seu a seu dono».

John Locke não é o único inglês que inspira os «philosophes»: na ciência, a maior referência é Francis Bacon (1561-1616). Por muito que valorizem o racionalismo dedutivo de Descartes, reconhecendo, embora, «que se perdeu sem dúvida na teoria», como escreve Jaucourt, autor de pelo menos um quarto das 71818 entradas dos 17 volumes de texto da «Encyclopédie», não podem ignorar a relevância do empirismo indutivo do chanceler. Quanto a Galileu, também está bem presente, por vezes ao lado de Newton – outra vez um inglês, vede só – mas o método experimental do físico italiano, que une a experiência à necessidade racional, não lhes suscita a devida vénia. Numa frase do «Discurso Preliminar», d’Alembert sintetizou com brilho a escandalosa proclamação filosófica das Luzes: «Locke reduziu a metafísica àquilo que ela na verdade deve ser, a física experimental da alma.»

Diz Paul Hazard: «Não é o amor pelo dinheiro que anima Diderot nem d’Alembert; é antes uma cruzada que eles dirigem, a cruzada da filosofia.» Destronada a teologia, afirma-se o primado do Homem. Do cientista, do artista, claro, mas também do profissional dos ofícios desprezados por uma nobreza de parasitas e pelos metafísicos do Antigo Regime. A burguesia, classe em ascensão, venera o trabalho das artes mecânicas. Mineiros, carpinteiros, vidreiros, agricultores, ingressam na «Encyclopédie»: todos os homens são iguais em direitos. Nota ainda o historiador, referindo-se à religião: «Os artigos de que a autoridade eclesiástica poderia desconfiar são inofensivos; porém, entre os outros não há nenhum onde, de uma maneira ou outra, pelo pouco desenvolvimento dado aos assuntos, ou mesmo por uma preterição, se não manifeste um espírito hostil às doutrinas recebidas, à autoridade, aos dogmas.» Mas Roma mantém viva «a tirania do sagrado»: em 1759, o papa Clemente XIII mandará pôr a «Encyclopédie» no Index…

«Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers», I e II, Flammarion, 1986, 343+379 páginas