António Rego Chaves
Publicados entre o fim de 1907 e o início de 1908 no Jornal «O Norte», em vésperas do assassínio de D. Carlos, os quatro artigos que formam este curioso livrinho assinado por Manuel Laranjeira (1877-1912) estão longe de ter perdido a sua actualidade no Portugal da União Europeia. Aliás, estes textos tinham sido já reunidos num opúsculo editado pela Contraponto em 1955 e também nas «Obras» (1993) em dois volumes da responsabilidade da Asa, organizadas, prefaciadas e anotadas por José Carlos Seabra Pereira.
Escreveu este estudioso do grande diarista nortenho: «Manuel Laranjeira procede à lúcida análise de um fenómeno epocal, identifica as suas raízes socioculturais e, combatendo a sujeição apática a explicações de degenerescência orgânica à maneira de Max Nordau, propõe antídotos sinérgicos, regeneradores da vontade colectiva e correctores das disfunções e injustiças na sociedade portuguesa.» Eis o diagnóstico e o tratamento prescrito pelo escritor, que aliás também era médico: «O mal da sociedade portuguesa é apenas este – a desagregação da personalidade colectiva, o sentimento de interesse nacional abafado na confusão caótica dos sentimentos de interesse individual. Em Portugal não existe o egoísmo da nação vencendo e disciplinando o egoísmo de cada português. A nossa vida política, económica e moral não tem sido senão uma série lastimosa de actos de egoísmo individual impondo-se despoticamente ao egoísmo colectivo, ao interesse da nação, e subjugando-o.» (…) «O nosso pessimismo quer dizer apenas isto: que em Portugal existe um povo, em que há, devoradas por uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria que sofre porque não a educam e uma minoria que sofre porque a maioria não é educada.» (…) «É preciso refazer tudo, refundir a sociedade portuguesa de baixo a cima, incansavelmente, obstinadamente, com o desespero tenaz e glacial de quem se debate contra a morte. A tarefa é árdua, trabalhosa, dolorosa, e demanda rios de energia perseverante. Mas é preciso empreendê-la, sob pena de nos vermos morrer ingloriamente, indignamente, relesmente, com o desprezo dos outros – e de nós mesmos.» Republicano de tendência libertária, nem o 5 de Outubro o afastou da obsessão do suicídio. Deu um tiro na cabeça – e partiu para sempre.
Afinal, que esperança tinha o povo português? Manuel Laranjeira sabe exprimir o que vê, o que intui, o que deduz, como poucos na sua época: «Um dos aspectos mais típicos da vida portuguesa e um dos seus males mais funestos é a sua prodigiosa fertilidade messiânica. A cada passo surge um homem que se sente com envergadura e ventre de messias. Por cada messias que aborta, pululam inesgotavelmente centos de messias, toda uma falperra de messias. E, enquanto a nação rola à aventura, de messianismo em messianismo, a sociedade portuguesa, infatigavelmente, vai-se dissolvendo e desagregando.» Estava-se na era do «messias» João Franco, a seguir viriam outras eras «messiânicas», republicanas de nome mas, de facto, anunciadoras do supremo «messias» lusitano, um certo Oliveira Salazar (companheiro de malfeitorias do futuro «ilustre purpurado» Gonçalves Cerejeira), ultimamente apresentado aos nossos concidadãos como uma espécie de «plaiboy» pronto a caçar e ser caçado por belas aristocratas, talvez para «vingar» as humilhações sofridas por si e pelo feitor seu pai. Mas que libertina versão da luta de classes – que, sabe-se, não foi inventada, mas descoberta por Marx, em meados do século XIX!
E – vamos lá a ver – neste pequeno e grande país de suicidas que foi e é o nosso, ode Antero, o de Camilo, o de Soares dos Reis, nesta terra onde «o pensamento representa um capital negativo, um fardo embaraçoso para jornadear pelo caminho da vida; num povo onde essa minoria intelectual que constitui o orgulho de cada nação se vê condenada a cruzar os braços com inércia desdenhosa, ou a deixá-los cair desoladamente, sob pena de ser esterilmente derrotada; num país onde a inteligência é um capital inútil e onde o único capital deveras produtivo é a falta de vergonha e a falta de escrúpulos – o diagnóstico impõe-se: o desalento e a descrença alastram.»
Manuel Laranjeira não podia, naqueles tempos, «adivinhar» a data exacta da proclamação da República, a infame traição de muitos intelectuais aos Direitos do Homem durante o Estado Novo, o 25 de Abril de 1974, tudo o que se lhe seguiu, em que houve tanto do melhor como do pior. Mas uma coisa, para ele como para todos, era mais do que certa: «Ou nos salvamos nós, ou ninguém nos salva.» Como sintetizou Fernando Cabral Martins: foi «um contemporâneo de muitos tempos.» Se tinha algum medo, se muitas vezes experimentou algum susto, foi sobretudo o de ser forçado a coexistir e conviver com a morna «tranquilidade podre» em que Portugal vegetava. A 28 de Outubro de 1908, confessaria a Unamuno: «Não falta mesmo por aí quem diga que isto não é já um povo, mas sim – o cadáver de um povo.»
A melancolia e a desolação por não poder modificar ou ajudar a modificar a sociedade a que não gostava de pertencer atinge a rudeza do sarcasmo: «Somos um povo civilizado…na aparência, porque a negra realidade é que quatro quintos da população portuguesa nem sequer sabem ler e escrever. Vestimos à moderna, pretendemos viver à moderna, e pensamos e sentimos à antiga. Somos um povo pertencendo pelo aspecto aos tempos dos Direitos do Homem e pertencendo, na verdade, pelo espírito, aos tempos da pedra lascada.» (…) E até há, lá fora, quem nos declare, brutalmente, que somos «uma nação morta, condenada a ser devorada pelo ventre esfíngico, insaciável, das nações vivas.» Terá o príncipe siciliano de Lampedusa lido Laranjeira? Apostaríamos que não. Mas cem por cento certo é que nunca Laranjeira leu Lampedusa, pois «O Leopardo» só em 1958 seria publicado.
A verdade é que Laranjeira acabou no Portugal europeu como Lampedusa na Sicília italiana: exausto por conhecer bem de mais os seus conterrâneos.
Manuel Laranjeira, «O Pessimismo Nacional», Padrões Culturais, 2008, 59 páginas