António Rego Chaves
Será actual o pensamento de Voltaire (1694-1778)? Tanto quanto se pode avaliar por este «dossier» do Magazine Littéraire – que nos últimos meses optou por nos «vender» muitas imagens e textos mais curtos, sem dúvida vergado por imperativos aparentados com os dos tablóides –, a resposta é claramente afirmativa. A prova não reside apenas no facto de o «Dicionário Filosófico Portátil» se encontrar este ano incluído no programa francês de admissão ao ensino de Literaturas Modernas. Vamos detectá-la, também, nos contos, no teatro, na poesia, na história e nas cartas pelos quais o pertinaz apóstolo das Luzes se tornou célebre desde o século XVIII.
Pierre Milza acentua, no entanto, aquilo a que chama um tanto eufemisticamente «as ambivalências voltairianas»: «o desprezador da tirania disputando os favores de Frederico II ou da Grande Catarina, ‘o amigo da Humanidade’ denunciando a estupidez e a selvajaria da ‘canalha’, o inimigo da superstição e do fanatismo católico implorando ao Papa Bento XIV que lhe envie medalhas [«medalhinhas»] com a sua efígie, o defensor dos direitos do homem partilhando os preconceitos antijudaicos do seu tempo, o futuro defensor de [Jean] Calas aprovando o suplício infligido a Damiens, autor de uma tentativa de regicídio na pessoa de Luís XV, uma fortuna largamente assente no comércio marítimo sem que o seu beneficiário se interrogue muito sobre a natureza da ‘mercadoria’ transportada, o que não significa, por si só, que Voltaire esteja associado a uma prática – a escravatura – que o horroriza e que condena, etc.» Mas, acrescenta o historiador, «o que faz a grandeza de Voltaire é a superação de si que pouco a pouco torna o cortesão sedento de prestígio e de honras, esse novo rico apaixonado pelo luxo e transformado em banqueiro de poderosos, em ‘intelectual’ empenhado na defesa dos perseguidos, assim como em filantropo que consagra uma grande parte da sua fortuna a metamorfosear um lugarejo miserável [Ferney] numa próspera aldeia. E é o carácter solitário do seu empreendimento.» De facto, Voltaire nunca teve «as costas quentes»: nenhum partido político, nenhuma casta social, nenhum «grupo de pressão» o incitou a agir ou lhe deu a sua «bênção». «Faço a guerra», dizia. Mas fazia-a bem sozinho, ao serviço da razão, da verdade e dos direitos do homem, com a manifesta simpatia e admiração de um núcleo de influentes admiradores espalhados por toda a Europa, mas que, na hora da verdade, nunca o poderiam fazer escapar a eventuais cóleras dos reis de França. Daí, em parte, as suas «ambivalências» e o seu «jogo duplo», reveladores, não de um temerário heroísmo, mas de um prudente realismo. Não será preciso «beatificar» Voltaire para conservar dele a imagem de alguém que combateu «o infame», defendeu as vítimas da intolerância, batalhou com uma intensa energia contra todas as espécies de fanatismo.
O filósofo espanhol Fernando Savater, ao falar do autor do «Cândido», não resiste a evocar a sua experiência pessoal, vivida em tempos felizmente já longínquos, para opinar: «No fundo, no século XX, sob o franquismo, um intelectual que descobria Voltaire tinha sem dúvida a mesma impressão de respiração mental do que a aquela que deve ter experimentado François Marie Arouet ao deixar a França absolutista por uma Inglaterra emancipada da ortodoxia religiosa e já muito avançada no plano das liberdades civis.» E anota: «Era na época em que, de resto, ele escrevia: ‘Nunca a natureza é tão envilecida como quando a ignorância supersticiosa está armada com o poder.’ No que me concerne, foi a ditadura franquista que me impeliu para a obra de Voltaire. Voltaire oferecia-me, então, uma respiração salutar. Eu sentia tanto mais apetência pela sua obra quanto os nossos educadores, impregnados de ideologia franquista, a caricaturavam como um empreendimento satânico.» A geração a que pertenço – e outras que a precederam, mais do que as que lhe sucederam – sabe bem quanto estas palavras podiam ser aplicadas ao salazarismo-caetanismo que a asfixiou durante dezenas de anos. Também em Portugal muitos jovens sofreram o que Savater sofreu, fosse no liceu, fosse nos bafientos corredores dos edifícios das universidades.
Referindo-se ao teatro de Voltaire, tão duramente desprezado pelos românticos, salienta Pierre Frantz: «A nossa época, a das interrogações sobre a democracia, do terror dos aiatolas, mas também das implicações neoconservadoras das Igrejas na vida política europeia ou americana, encontraria na obra dramática de Voltaire [«Mahomet», «Zaïre», «Brutus»] algumas vias de reflexão.» De facto, o teatro era condenado pelos teólogos, por Bossuet, pelos jansenistas, mesmo por Rousseau – e os comediantes não se livravam da excomunhão. Mas Luís XIV e Luís XV, longe de o proibirem, favoreciam os espectáculos de todas as espécies, que consideravam aptos a desviar as paixões populares de objectivos incómodos para o Poder. Voltaire manteve-se atento – e o palco foi mais uma correia de transmissão dos seus ideais de tolerância.
É sabido que Nietzsche, no centenário da morte de Voltaire, a quem considerava «um dos maiores libertadores do espírito», lhe dedicou o seu importante ensaio «Humano, Demasiado Humano». Nele, releva Guillaume Métayer, o filósofo alemão considera ser necessário reerguer «a bandeira das Luzes» e «retoma o prolongamento de um gesto de reforma da nossa civilização judaico-cristã em nome da ‘liberdade de espírito’, obra de novo necessária, pois um século de romantismo desfez o trabalho das Luzes e conservou demasiado cristianismo deslavado na sua suavidade artística, demasiado moralismo na sua política igualitária e na sua ética compassiva». O grande mérito de Voltaire, para Nietzsche, terá residido em «assinalar a possibilidade de uma alegria inédita no espírito, uma emancipação, para o alto, da gravidade [pésanteur] da mortificação, o surgimento de uma ‘segunda natureza’ civilizada, capaz de agir com a leveza, a segurança e a elegância da primeira.» Devido a estas e outras considerações acima apontadas, Voltaire não pode, aqui e agora, ser ignorado pela cultura ocidental.
«Le Magazine Littéraire», Setembro de 2008, 106 páginas