Fizeste 20 anos e partes sozinho. É a tua primeira viagem ao estrangeiro, forçoso que a faças a sós contigo mesmo, porque vais ver e amar a cidade mágica, Paris. Não percas tempo e leva todo o dinheiro que puderes arranjar. Escolhe um quarto banhado de luz num pequeno hotel algures nas imediações da Sorbonne. Depois, pousa a mala, veste-te com esmero, porque vais visitar uma das ilhas encantadas do teu sonho, percorrer sem pressa as suas ruas, olhar com íntimo respeito a cultura que se desprende dos seus edifícios, abraçar sem medida cada boulevard, cada praça, cada esplanada onde tomarás pequenas chávenas de café bien serré, cognac, talvez o marc du patron. Esse bebe-o devagar, toda a atenção concentrada no novo sabor que te é proporcionado. Como se sorvesses a terra prometida a pequenos e deliciados golos, o tempo infinito à tua frente.
Não é uma cerveja no inferno, tu és um diabo no paraíso. Levas a cabeça cheia de mitos. Talvez o de Nadja. Não a procures à beira do Sena, junto aos bouquinistes, que ela não habita por essas paragens. A verdadeira Nadja não vive em parte alguma, está apenas na tua cabeça, tal como ocupou sem tréguas a imaginação de André Breton. Mas essa é outra viagem, a que ele cumpriu, a que tu poderás fazer ao interior de ti próprio.
Por agora sê prosaico. Passeia-te, conjuga o verbo “flanar” nos Boulevards Saint-Michel e Saint-Germain, opta pelo hedonismo. Tens direito ao hedonismo, todos temos, de vez em quando, o pleno direito de esquecer a melancolia de viver em Portugal. Prova as ostras, os escargots, o steak-au-poivre. Pede a quem te servir que te ajude a escolher os vinhos. É mais seguro, a não ser que um velho amigo ou teu pai te tenha ensinado, antes de partires, o bê-a-bá da enologia francesa. Aliás, se estiveres interessado no tema, descobrirás sem esforço um pequeno livro de bolso que te servirá de guia durante as tuas mais arrojadas libações. Nunca feches a refeição com um whisky: seria uma ofensa às esplendorosas uvas francesas e aos admiráveis digestivos que o engenho humano lhes fez gerar.
Não esquecerás os museus, os monumentos, as livrarias. Toma um banho de impressionistas, entra em Notre-Dame num fim de tarde e agradece a Deus, se Ele te der ânimo para tanto, o privilégio de ver a catedral, a grande heroína de Victor Hugo, com seus vitrais e suas gárgulas. Percorre com atenção as livrarias e arranja boas edições anotadas de Montaigne e de Pascal. Não tentes lê-los agora: a tua cabeça está cheia de outras coisas e no regresso terás a vida inteira para conhecer com maior profundidade os Ensaios e os Pensamentos. Hoje estás apenas a namorar a cidade deslumbrante, compras alguns bouquins, deixa-los dentro da mala, no hotel, e voltas à Praça da Sorbonne, onde folheias um jornal ou uma revista, escreves uma pequena carta a um amigo ou a uma amiga, olhas e vês quem está e quem passa. Por vezes, talvez chegues à conclusão de que Paris seria bem melhor sem a maior parte dos parisienses: mas, neste lugar, não. Eles e elas têm os teus 20 anos, são mais joviais do que os senhores e as senhoras de meia-idade, menos incorrigivelmente franceses, isto é, por enquanto só um tudo-nada arrogantes. De resto, nunca te esqueças de que Paris é a tua cidade, talvez muito mais tua do que da maioria deles, porque tu amas os impressionistas, Montaigne e Pascal. E, acima de tudo, a mítica Nadja.
Fixarás os nomes de algumas estações de metro e hás-de recordá-los como velhos conhecidos: Strasbourg-Saint Dennis, Denfert-Rochereau, Odéon, Montparnasse-Bienvenue, Opéra, Porte d’Orléans, Porte de Clignancourt, La Motte Picquet-Grenelle. Deitarás um olhar curioso ao Café de Flore, ao Deux Magots, à Brasserie Lipp. Sartre observa-te, Camus acompanha-te, a Beauvoir espia-te e lembra-te a impiedade da memória dos outros a nosso respeito. Depois, num assomo de gulodice, irás a um Bistro Romain, comerás salmão fumado, carpaccio e mousse de chocolate à volonté, como à volonté beberás caudalosos rios de grappa servida numa imensa garrafa revestida de gelo. Noite adentro, quando regressares ao hotel, talvez sejas abordado por uma solícita mademoiselle alourada que te perguntará se procuras companhia. Dirás, sorrindo, que é demasiado tarde, e agradecerás a gentil sugestão vinda de um mundo tenebroso. Dormirás como um anjo, podes estar certo.
Se só puderes ficar uma semana, fica então apenas uma semana. Mas se tiveres a possibilidade de prolongar a tua estada, não regresses logo. Agarra com as duas mãos mais um pedaço de eternidade. Verás, depois, quando chegares ao teu Outono, trinta ou quarenta anos mais tarde, que a peregrinação a Paris valeu bem a pena. Valeu bem a pena porque, ao lado dos fantasmas de Cézanne e Renoir, de Rodin e Camille Claudel, de Heloísa e Abelardo – estes dois últimos finalmente em comunhão de leito e habitação, no Père Lachaise –, a tua alma não podia ser, não foi mesmo, pequena. Pelo menos por uma vez.
P. S. - Frequentarás também a Livraria La Hune (Boulevard Saint-Germain, 170, aberta até altas horas da noite), irás três ou quatro vezes ao Museu d’Orsay (Van Gogh, Gauguin, Manet, Monet, Sisley, Millet, Toulouse-Lautrec, Pissarro, Signac, além dos já lembrados Cézanne e Renoir), preguiçarás ao fim da tarde no Harry’s Bar (Rue Daunou, 5), onde o respeito devido à sombra de Hemingway, o suicida de Ketchum, te ordenará que tudo bebas, menos Coca-Cola sem uns decilitros de rum.»