António Rego Chaves
Que se sabe, exactamente, das «Cartas Portuguesas» de Mariana Alcoforado? Confrontadas várias opiniões, apaziguados os ânimos mais exaltados, o consenso é este: alguém as redigiu em francês cerca de 1669 – isto de acordo com o «diktat» sabe-se lá se machista do opulento centro cultural do continente europeu em prejuízo da atrofiada periferia da sua costa ocidental – presumivelmente um certo Gabriel-Joseph de Lavergne, conde de Guilleragues, diplomata e escritor nascido em Bordéus no ano de 1628 e falecido em Constantinopla em 1685. Publicada a obra, Laclos, Stendhal e Rilke acreditaram na autenticidade das cartas, ao passo que Rousseau (cuja opinião viria a ser corroborada por Camilo) garantia ser capaz de apostar «tudo no mundo» que elas tinham sido escritas, não por uma mulher, mas por um homem. E explicava ao «Século das Luzes»: «Elas não sabem nem descrever nem mesmo sentir o amor.»
Convenhamos, o autor d’ «As Confissões» ultrapassou aqui todos os limites do mais elementar bom-senso, rivalizando mesmo com a afrontosa estupidez de Noel Bouton de Chamilly, o garboso oficial francês amante de sóror Mariana Alcoforado. Ficavam assim antecipadamente justificados os prolongados rangeres de dentes das feministas europeias, incluindo os de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa – as «Três Marias», cujos nomes atravessaram meio mundo quando, corria o ano de 1972 e já a ditadura estrebuchava entre nós, ousaram publicar as «Novas Cartas Portuguesas», viram o seu manifesto apreendido e foram obrigadas a sentar-se no banco dos réus, sob a acusação de «ofensa à moral pública». Mas, na verdade, como escreve a autora deste bem documentado ensaio, a polaca Anna Klobucka, as arrojadas «Três Marias» recrutaram a freira de Beja para o seu projecto progressista, «onde se incluíam quer uma descrição e uma denúncia directas das realidades sociais e históricas vividas pelas mulheres portuguesas, quer uma remitificação semiótica compensatória de uma das ficções mais relevantes da feminilidade portuguesa».
Neste cantinho salazarento, o irrequieto católico integrista Alfredo Pimenta clamara em 1941: «Que sabemos nós, matulões do sexo forte, do que seja a psicologia feminina, para nos mascararmos de Maria Ana Alcoforado, e nos aventurarmos a interpretar os sentimentos de uma mulher do século XVII, e religiosa ainda por cima?» Isto depois de Luciano Cordeiro, antigo «companheiro de jornada» da Geração de 70, ter provado em 1888 que Mariana Alcoforado nascera em 1640 na cidade de Beja, fora freira no convento da Conceição e tinha cerca de 25 anos na altura da breve estada de Chamilly em Portugal. Escreve a ensaísta: «A difícil situação de Mariana – mulher, provinciana, com uma existência enclausurada e insípida, abandonada por um galhardo amante francês e ansiando sem esperança pelo homem ausente e o seu país longínquo, ainda que protestasse o seu orgulho e independência – encontrava eco, de muitas e diversas maneiras, nos escritores e historiadores que tentavam conformar-se com a progressiva marginalização de Portugal face às grandes potências coloniais europeias, muito em especial a França e a Inglaterra.» Neste contexto, a partir de 1819 e até 1969 a obra seria sucessivamente traduzida por Filinto Elísio (era necessário, segundo entendia o poeta, «desgalicizar o português»), José Maria de Sousa Botelho, Lopes de Mendonça, Domingos José Enes, Luciano Cordeiro, Joaquim Gomes, Manuel Ribeiro, Jaime Cortesão, Afonso Lopes Vieira e Eugénio de Andrade. Terá sido «o único produto verdadeiramente sentido, verdadeiramente belo, que a alma portuguesa apresenta no século XVII» (Ferdinand Denis), «essência concentrada da portugalidade» (Teófilo Braga), «penetração, ainda que bastarda, do nosso lirismo no génio clássico e rigidamente intelectualista da França de Corneille e de Racine» e «documento da influência espiritual exercida por nós na Europa» (António Sardinha), «memória eterna do sentimento português» apenas comparável a Camões (Manuel Ribeiro), tentativa de fixação do cânone literário português (João de Castro Osório), «reaportuguesamento de Portugal» contra os ideais positivistas e universalistas da Geração de 70 (João de Castro Osório e Afonso Lopes Vieira), falso espelho «em que os portugueses em vão se têm procurado, e os estrangeiros encontram um mito de Portugal» (Andrée Crabbé Rocha)?
Não está em causa quem ou quantos têm ou não têm razão. O que Anna Klobucka pretende é unicamente analisar as «Lettres Portugaises» como «o artefacto cultural multifacetado em que se tornaram desde o seu início, no século XVII, um texto cujo significado tem sido construído através da longa e complexa história das suas diversas interpretações e dos debates sobre a sua origem.» Para o caso, pouco importaria quem foi o verdadeiro autor da obra, pois o principal objectivo da ensaísta consiste apenas em determinar qual o significado do texto produzido. Embora adopte como premissa de trabalho a tese da autoria de Guilleragues, volta a atenção não para a França mas para Portugal, dado que foi aqui «que a história da paixão e do triunfo epistolar de Mariana Alcoforado encontrou solo mais fértil no imaginário nacional, transformando o país (real) da sua origem (ficcional) num espaço verdadeiramente fascinante de invenção e intervenção cultural». Trata-se de relatar «um meticuloso projecto de criação de um mito cultural, que se estendeu por dois séculos e envolveu metodologias tão diversas como a investigação histórica genuína, a fantasia romanceada, a argumentação política e, pelo menos, um notável exemplo de mistura pós-moderna de todas elas» (as já referidas «Novas Cartas Portuguesas»). Seja como for, uma vez conhecido este notável ensaio, valerá sempre a pena reler ainda uma vez as admiráveis cinco cartas de Mariana Alcoforado, redescobrindo nelas «uma paixão que nada pode desculpar senão o próprio amor» – como escreveu a sua célebre contemporânea Madame de Sévigné (1626-1696), considerada a maior epistológrafa francesa.
Anna Klobucka, «Mariana Alcoforado – Formação de um Mito Cultural», Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, 199 páginas