António Rego Chaves
Seleccionar factos e interpretá-los são duas indeclináveis etapas do ofício de historiador. Por isso se estranha que os organizadores desta «História da Primeira República em Portugal» não tenham seleccionado certos factos, enquanto outros autores prescindiram de interpretar factos por eles próprios seleccionados. No primeiro caso estamos perante lamentáveis omissões; no segundo, deparamos com trabalhosos róis de acontecimentos «em bruto», por explicar. Quanto aos factos não seleccionados, basta dizer que no livro não houve lugar para a Cultura durante a Primeira República. Eis o que brada aos céus, sobretudo se pensarmos na «Renascença Portuguesa» e na revista «A Águia», no Modernismo e em «Orpheu», no Futurismo e no «Portugal Futurista», enfim, na «Seara Nova» – que dir-se-ia só não ser ignorada porque António Sérgio, Ribeiro de Carvalho e Azevedo Gomes participaram no segundo governo de Álvaro de Castro (1923-1924).
Anuncia Fernando Rosas, na Introdução, que «a obra se encontra dividida em cinco partes que seguem, quanto ao essencial, uma ordem cronológica: a queda da Monarquia; a revolução republicana e a primeira fase da República (1910-1918); a Grande Guerra e os seus impactos; a Nova República (1919-1926); e o fim da República. Dentro de cada um, e de acordo com as especificidades dos diferentes períodos, procurou-se analisar a evolução política, as questões religiosa e social, as políticas sectoriais mais relevantes (a educação, a política colonial, a política externa, o fomento económico e a inovação e a evolução da situação financeira, terminando-se com a discussão dos factores que ditaram o fim do regime liberal-republicano.» Acompanhemos este último problema, cuja solução parece ainda estar longe de ser consensual, mesmo entre os especialistas.
«Epílogo: o fim da Primeira República» é o título do texto assinado por António Reis. Sublinhando que Portugal conheceu catorze governos entre as eleições de Maio de 1919 e de Janeiro de 1922, e que desde 1919 o Presidente da República possuía o poder de dissolver o Parlamento, adianta o historiador que, após as referidas eleições de 1922, que voltaram a dar a maioria ao Partido Democrático, o governo chefiado por António Maria da Silva «inicia a obra de saneamento das finanças públicas e de controlo da inflação» e que, «logo a seguir, entre Dezembro de 1923 e Junho de 1924, Álvaro de Castro, dissidente democrático e depois dissidente nacionalista, assegurará a continuação desta política com ainda mais eficácia.»
Interrogando-se sobre os principais factores que conduziram à «crise final e fatal da Nova República que sucedera à fugaz ‘República Nova’ de Sidónio», o autor afasta «as teses que tendem a acentuar a importância da questão religiosa, da questão do regime (Monarquia ‘versus’ República), da questão operária e até da questão da conjuntura internacional». Quanto às relações Estado/Igreja, porque a Lei da Separação de 1911, da autoria de Afonso Costa, já fora objecto «de uma substancial e significativa revisão» pelo sidonismo; no que se refere ao regime, porque «o período da Nova República é um período de evidente acalmia» em torno do tema; no que diz respeito ao operariado, porque este representava apenas uns escassos cinco por cento da população; finalmente, no que se reporta à conjuntura internacional, «a situação política europeia, [apesar dos êxitos do fascismo em Itália e de Primo de Rivera em Espanha], estava longe de configurar um quadro irreversivelmente favorável às soluções autoritárias».
Assim sendo, a que se deveu a queda da Primeira República? Responde António Reis: a factores político-culturais. Mas que factores? Políticos: «o agravamento da crise de legitimidade/representatividade do regime republicano», com «aumentos da abstenção para índices superiores a 60 por cento»; «a reiterada incapacidade de auto e hetero-regulação do funcionamento do sistema institucional do republicanismo liberal»; «a incapacidade de fazer frente à oligarquia financeira»; «a eficaz reorganização do campo conservador»; «a importância do factor militar». Culturais: «a perda de confiança das elites intelectuais, à esquerda e à direita, na classe política dominante»; «o vazio ideológico da generalidade das elites políticas dos partidos republicanos»; «a consequente diluição das opções ideológicas e dos ideais éticos em mesquinhas lutas pelo poder e na permeabilidade aos interesses da oligarquia económica»; «o controlo da grande imprensa por parte das correntes conservadoras hostis ao Partido Democrático»; «o alastramento da síndrome ditatorial na opinião pública».
Além dos ensaios assinados por Fernando Rosas e Maria Fernanda Rollo, integram também esta obra textos de Ana Catarina Pinto, Ana Paula Pires, Aniceto Afonso, David Pereira, Ernesto Castro Leal, Filipe Ribeiro de Meneses, Isabel Pestana Marques, Joana Dias Pereira, João B. Serra, Luís Farinha, Maria Alice Samara, Maria Cândida Proença, Maria Eugénia Mata, Sílvia Correia e Vítor Neto. Correndo o risco de nos guiarmos por critérios demasiado subjectivos e de subestimar algum texto, permitimo-nos relevar os seguintes trabalhos, cuja qualidade e cujo interesse nos pareceram mais evidentes: «A evolução política (1910-1917)», por João B. Serra; «A questão religiosa» (Vítor Neto); «A política financeira» (Maria Eugénia Mata»; «Sidonismo e restauração da República» (Maria Alice Samara); «A transformação política da República: o bloco radical» (Ana Catarina Pinto); «A transformação política da República: o PRP dos ‘bonzos’» (Luís Farinha); «A transformação política da República: as direitas da direita antiliberal» (Ernesto Castro Leal); «A caminho do 28 de Maio» (Luís Farinha). Seja como for, há que louvar a iniciativa de recordar a República, à beira do centenário que se celebrará em 2010. Para que a sua lição não seja esquecida, para o melhor e para o pior, para o que der e vier.
Fernando Rosas e Maria Fernanda Rollo, «História da Primeira República Portuguesa», Tinta-da-china, 2009, 614 páginas