António Rego Chaves
Vinha de longe o intento de transformar Portugal em província de Espanha. Atribui-se ao imperador Carlos V (1500-1558) um plano para interferir na sucessão portuguesa, à medida que morriam os herdeiros directos de D. João III. Aliás, diversos historiadores sustentam que, mesmo em 1583, já depois da perda da independência, o rei de Castela quis desposar Catarina de Bragança, mas a duquesa recusou ser rainha de Espanha, a fim de que seu filho, D. Teodósio, não perdesse o direito à Coroa de Portugal. Três anos antes, em 25 de Agosto de 1580, as tropas de do Duque de Alba tinham derrotado o Prior do Crato. E, em 15 de Abril 1581, as Cortes de Tomar haviam declarado Filipe II (1527-1598) rei de Portugal. Este entrou triunfante em Lisboa, a 25 de Julho, e jurou manter os foros, privilégios, usos e liberdades do País. Estava consumada a anexação.
São há muito matéria controversa os malefícios e benefícios da governação castelhana de Portugal. Oliveira Marques lembrava que, «por detrás de todas as tentativas de unificação peninsular, existiram sempre a emulação internacional e o engrandecimento senhorial, mais ainda do que o ideal de uma pátria comum.» E sublinhava que, «desde meados da centúria de Quinhentos, o Império Português e a sua organização económica geral – com todo o seu peso no destino último do País – formavam uma espécie de complemento do Império Espanhol». Além disso, «espanhóis e portugueses iam tendo inimigos comuns, em crescente número e actividade: os Franceses, os Ingleses, mais tarde os Holandeses também. A pirataria prejudicava a navegação das duas partes, atacando-a frequentemente na mesma rota marítima e exigindo a acção combinada das frotas dos dois países. Contra mouros e turcos, também Portugal e Espanha exerciam acção conjunta.» (…) «Espanha e Portugal eram aliados naturais».
Convencidos, ameaçados ou comprados os elementos dirigentes da sociedade portuguesa, «não levou muito tempo a Filipe II obter o apoio do alto clero, da maior parte da nobreza, dos intelectuais, dos burocratas e dos comerciantes.» Acrescentava o saudoso historiador, referindo-se às normas que passaram a reger Portugal, impostas pelo monarca estrangeiro antes do seu definitivo regresso a Espanha, em 1583: «Depois de mais de dez anos de descalabro governativo, de actos irresponsáveis e de impostos crescentes, estes padrões modelares de administração, que parecem ter sido suficientemente postos em prática, juntos à sábia decisão de manter a identidade do País, explicam grande número de coisas. Durante várias décadas, a nação aceitou menos-mal a perda da independência. As várias tentativas do Prior do Crato de ganhar o trono depararam com uma indiferença geral ou com um escasso apoio das populações. Voltara a prosperidade, o tesouro mostrava-se de novo relativamente equilibrado, o Império ia-se conservando sem perturbações. Se persistiam os agravos contra a Espanha e se se mantinha vivo o desejo de possuir um rei português, não há dúvida de que a excelente administração de Filipe II (com poucas perseguições políticas) soube minorar o problema e resolvê-lo até por muito tempo.» O pior viria depois, com Filipe III e Filipe IV, mas não é esse o terreno do britânico Henry Kamen.
Em curiosa nota à edição portuguesa, o autor apressa-se a informar-nos de que o seu livro saiu em inglês com o título «Phlip of Spain». E acrescenta: «Esta nova edição em língua portuguesa surge naturalmente [sic] com o título «Filipe I, o Rei que Uniu Portugal e Espanha.» Mas vai mais longe, o benévolo investigador, na sua condescendência para com os indígenas da ocidental praia lusitana: «O meu trabalho sobre a grande questão: quais as vantagens sobre [sic] a unificação de Portugal e Espanha continuou a ser aprofundado num trabalho posterior a este, intitulado ‘O Grande Duque de Alba’, editado em Espanha pela La Esfera de los Libros em 2004.»
O oportunismo é, no mínimo, triplo:
1) modifica-se o título em português (mas não em castelhano, língua em que o livro surge como «Felipe de España»), dando-se a entender ao desprevenido comprador que, caso disponha de trinta euros, tudo ficará a saber sobre a «união» [estranha união, a dos senhores e dos escravos] das duas nações ibéricas durante o reinado de «Filipe I»; 2) remete-se o leitor para uma outra obra do mesmo autor, publicada em Espanha, que, essa sim, nos dirá a última palavra sobre a «união» de seis decénios e que é, nada mais nada menos, do que uma biografia do Duque de Alba, que morreu em Lisboa no dia 12 de Janeiro de 1582, ou seja, nem dois anos depois de ter invadido Portugal; 3) a editora espanhola chama-se «La Esfera de los Libros» e a portuguesa «A Esfera dos Livros». «Mera coincidência», digna de uma comédia produzida em Hollywood!
Resta relevar que esta é uma biografia bem documentada tanto do homem como do estadista Filipe II e que foi saudada com entusiasmo na Grã-Bretanha (onde se sabe um pouco acerca da Espanha do século XVI, até por causa da «Invencível Armada», em que, aliás, se encontravam integrados 12 navios, 3330 homens de guerra e 1293 marinheiros portugueses). Pena que o autor pareça não se dar conta de que Portugal era, antes de 1580, uma grande potência imperial com interesses nos quatro cantos do mundo e muito pouco nos diga digno de nota sobre a ocupação do País no tempo de «Filipe I». Muito teria ganhado se tivesse consultado alguma bibliografia portuguesa (por exemplo Rebelo da Silva, Fortunato de Almeida, Queiroz Veloso, Veríssimo Serrão ou Oliveira Marques), trabalho a que manifestamente não se quis dar. Mas é evidente que não deveria encarar o reino de Portugal anterior à perda da independência como se tivesse uma importância geostratégica idêntica à de Aragão, da Catalunha ou de Valência: a História, se bem que não seja uma ciência exacta, não permite [ainda?] que tais atropelos sejam cometidos com total impunidade, isto é, sem um severo juízo crítico dos que a estudam em busca da verdade dos factos. Quanto ao resto, ou seja, o oportunismo de alguns autores e editores, ficamos conversados…
Henry Kamen, «Filipe I – o Rei que Uniu Portugal e Espanha», «A Esfera dos Livros», 2008, 519 páginas