O secreto centro do romance
António Rego Chaves
Pode-se escrever um excelente livro com um título erróneo: foi, a nosso ver, o que desta vez Orhan Pamuk, distinguido com o Nobel da Literatura em 2006, fez, indo buscar inspiração ao célebre ensaio de Schiller «Sobre a poesia ingénua e a sentimental» (1795). Rigoroso seria que o título escolhido pelo escritor turco fosse algo como «Sobre o romancista ingénuo e o reflexivo». Menos «apelativo», talvez, mas decerto mais fiel ao texto.
Aliás, o autor explica-se, logo de início, sobre os conceitos que adopta: «Alguns romancistas não têm consciência das técnicas que estão a usar: escrevem espontaneamente, como se estivessem a fazer algo perfeitamente natural. (…) Utilizemos a palavra ‘ingénuo’ para descrever este tipo de sensibilidade, este tipo de romancista e de leitor de romance – aqueles que não estão de maneira nenhuma preocupados com aspectos, digamos, ‘artificiais’ da escrita e da leitura de um romance. E utilizemos o termo ‘reflexivo’ para descrever a sensibilidade precisamente oposta, ou seja: os leitores e os escritores fascinados pela técnica de artificialidade do texto e pela sua incapacidade de atingir a realidade, prestando extrema atenção aos métodos utilizados na escrita dos romances e à maneira como a nossa mente funciona ao lê-los. De facto, ser romancista é ter a arte de ser simultaneamente ingénuo e reflexivo.» (…) «Ler ou escrever um romance implica uma contínua oscilação entre esses dois estados de espírito.»
«Os romances são vidas segundas, vidas paralelas às nossas», sugere o escritor. E convida-nos a sair de nós, para que entendamos os universos das personagens criadas pelo ficcionista: «Ler um romance significa compreender e mundo através de uma lógica não cartesiana. Quero dizer com isto a capacidade constante e firme de acreditar simultaneamente em ideias contraditórias. Assim, uma terceira dimensão da realidade começa lentamente a emergir perante nós: a dimensão do mundo complexo do romance. Os elementos que o compõem entram em conflito uns com os outros e, no entanto, ao mesmo tempo, são aceitos e descritos.»
Superemos preconceitos: «Fazemos juízos morais, quer sobre as decisões, quer sobre o comportamento dos protagonistas; ao mesmo tempo, julgamos o escritor pelos seus juízos morais relativamente às suas personagens. O juízo moral é um pântano inevitável no romance. Devemos ter sempre presente na nossa mente que a arte do romance dá os seus melhores frutos, não julgando pessoas, mas sim compreendendo-as, devendo nós evitar a tendência perniciosa da nossa mente para o juízo moral.»
Que haverá de específico no romance? – pergunta-se. Sustenta Pamuk: «O que distingue os romances de outras narrativas literárias é que têm um centro secreto. Ou, mais exactamente, baseiam-se na nossa convicção de que há um centro secreto que devemos procurar ao ler.» Buscamos no romance aquilo a que Tolstoi chamava «o sentido da vida» – mas talvez nunca achemos nele «o centro», até porque não é certo que ali haja apenas um. Cada romance, cada autor, cada leitor, pode revelar múltiplos centros...
A verdade é que «a razão pela qual nos entregamos à leitura de romances propriamente literários, complexos, grandes romances universais, onde procuramos ideias e sabedoria que possam conferir um sentido à vida, é a de nos sentirmos deslocados, inadaptados ao mundo. O homem moderno lê e tem necessidade de romances a fim de se integrar no mundo, dado que a sua relação com o universo em que vive se tem deteriorado – e, nesse sentido, faz a transição da ingenuidade para a sentimentalidade reflexiva.»
Mas será que em todos os romances que conhecemos, mesmo naqueles que nos habituámos a chamar «literatura light» ou «descartável», valerá a pena procurar «o sentido da vida»? Resposta do autor: «Ao lermos romances comerciais – ficção científica, policiais, romances históricos fantasistas, histórias românticas – nunca nos interrogamos como Borges se interrogou ao ler ‘Moby Dick’: qual o verdadeiro tema? Onde está o centro? O centro desses romances está precisamente no mesmo sítio onde já o tínhamos encontrado, ao ler romances do mesmo género. Só as aventuras, o cenário, as personagens principais e (no caso dos romances policiais) os assassinos são diferentes. Nos romances comerciais, o tema profundo que a narrativa deve implicar a nível de estrutura mantém-se o mesmo de um livro para outro.» (…) «Os romances ditos comerciais não provocam de todo nenhuma necessidade urgente de encontrar o centro da obra.»
Trata-se, repetimos, de mais um excelente livro do autor da fascinante evocação que é «Istambul – Memórias de uma Cidade», onde impera o «hüzün», «esse sentimento sem paralelo» que identifica a capital turca e os seus habitantes, esse «sentimento negro experimentado conjuntamente por milhões de pessoas», essa vivência colectiva da melancolia, da angústia, da tristeza, essa vivência resignada da perda irreversível do Império Otomano. Numa linguagem sempre simples, directa, sem arrebiques (o romancista, apesar de ter proferido na Universidade de Harvard as seis conferências que constituem este ensaio, conservou intacta a nobre preocupação de ser entendido pelo maior número possível dos leitores que o procuram) Orhan Pamuk fala-nos dos «segredos» do seu ofício de escritor e das obras dos «grandes mestres» do Ocidente e da Rússia que mais admira, como Tolstoi, Stendhal, Proust, Thomas Mann, Dostoievski, Virginia Woolf. Mas não se inibe de nos enviar, com rara humildade intelectual, uma mensagem em tom de confidência: «Espero que o leitor tenha em mente que este livro foi escrito do ponto de vista de um escritor autodidacta, que atingiu a maturidade na Turquia dos anos 70, numa cultura com fraca tradição de escrita de romances e, em geral, de leitura de livros, tendo decidido tornar-se romancista graças aos livros da biblioteca do pai e de onde fosse possível encontrá-los, como alguém que anda às apalpadelas no escuro.»
Orhan Pamuk, «O romancista ingénuo e o sentimental», Editorial Presença, 2012, 143 páginas