António Rego Chaves
O autor é figura de destaque, o título é erróneo. Expliquemo-nos. O autor é figura de destaque porque se doutorou na Sorbonne em Antropologia Religiosa e História Comparada das Religiões, foi embaixador da Roménia junto da Santa Sé, de São Marino, de Malta e de Portugal e desempenha actualmente idênticas funções em França. O título é erróneo porque o conteúdo do livro está longe de constituir um «Retrato do Cristianismo Europeu» – quedando-se por uma débil contextualização da religião ortodoxa romena. Posto isto, vamos ao que mais importa, ou seja, aos breves ensaios deste diplomata nascido em 1963, autor de várias obras de cariz religioso, cristão ortodoxo praticante e verrinoso anticomunista, que se dá ao luxo de parecer quase ignorar a barbárie fascista que a Roménia viveu entre as duas guerras mundiais do século XX, a última das quais como obediente aliada da Alemanha nazi.
Estamos longe da geração dos grandes exilados romenos que fizeram carreira no Ocidente: Mircea Eliade, Ionesco, Cioran, considerados como estrelas de primeira grandeza entre os intelectuais que trocaram Bucareste pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental. Palavras do autor: «Eliade – especialista do arcaísmo e hermeneuta da simbologia religiosa – fornecia-nos [cerca de 1980], em embalagem erudita, a dose de sacralidade que a cultura oficial [a da era do ditador Nicolae Ceausescu] nos recusava teimosamente; Ionesco – cenógrafo monossilábico do vazio metafísico – recebia uma bizarra interpretação socializante, explicável se pensarmos que, nesse tempo, assistíamos todos a um esgotante espectáculo de teatro do absurdo; Cioran – cujo niilismo aforístico deveria, em princípio, deprimir-nos – tinha, pelo contrário, o dom de nos desentorpecer, como se o mal, na história, se dissolvesse na sua própria expressividade.»
Teodor Bakonsky não poderá ser liminarmente arrumado na nossa estante dos pensadores reaccionários do século XXI: ele é bem mais ou bem menos do que «isso». Bem menos porque reconhece sem rodeios que «a geração política de 1968, hoje no poder em todas as capitais europeias, tende a encarar o aparecimento das desigualdades e o aparecimento de largas categorias de excluídos como mal necessário, que deve ser tolerado, na medida em que não afecta a base eleitoral de uma classe média relativamente próspera». Bem mais porque parece obcecado pela ideia de que «a Europa do Sudeste foi marginalizada, não tanto por motivos de disparidade civilizacional ou por causa da sua antiga pertença ao Império Soviético [sic], quanto porque representa o ‘famoso mundo ortodoxo’». Ora a verdade é que, à luz da actual realidade europeia, não faz qualquer sentido sustentar, como faz o autor, que russos, romenos, gregos, búlgaros, sérvios e ucranianos não se converteram ao cristianismo ocidental, «procurando sempre, às vezes com sacrifícios, o difícil equilíbrio entre a fidelidade às crenças ancestrais, a utopia de um revivalismo bizantino e as prementes solicitações da modernidade». E vitimizar o Sudeste perante o Sudoeste é, no mínimo, ridículo. Pois não fomos nós, portugueses, há muito relegados para a cauda da Europa?
Estranho, também, é o à-vontade com que o ensaísta quase ignora o Protestantismo, centrando todas as suas esperanças de unidade ou «comunhão» cristã no diálogo entre católicos e ortodoxos. Grosseiro erro de cálculo, pois todos os seus textos de sentido ecuménico agora publicados em língua portuguesa foram escritos antes de Bento XVI ser escolhido para suceder a João Paulo II. Ora, como é público e notório, o ex-cardeal Joseph Ratzinger não abdica(rá), na sua «infalível» arrogância papista, de se tomar por incontestável detentor da «verdade absoluta» em matéria de fé. Daí que, no que se refere a um autêntico diálogo, nada de positivo seja lícito esperar hoje do Vaticano.
Aqui e ali, no entanto, algumas frases, mesmo certas páginas, salvam este livro da sua evidente cegueira ideológica e do seu arreigado fanatismo religioso, como quando o tenaz aprendiz de argumentação politiqueira se «esquece» da sua «missão» propagandística e parece recolher-se em si próprio. Dir-se-ia pressentir que, apesar de estar ainda longe de ser um homem idoso, não poderá deixar de enfrentar, um dia, olhos nos olhos, a morte que se aproxima. Ei-lo, atrevemo-nos a dizer que no mais profundo da sua intensa solidão, num curto ensaio que intitulou «A Teologia das Idades» e que, a nosso ver, poderá tocar bem fundo quem o ler com a devida atenção:
«É necessário o terror dos espaços cegos, da infinita pressão de um tempo virtual, para sentir a urgência de Deus. E quem poderá experienciar uma tal ansiedade melhor que os jovens e os velhos? À excepção de casos colaterais, eles são, todos, expoentes de um egoísmo sacrificial. O jovem porque, em pleno narcisismo, está pronto a morrer por uma causa elevada, quando a compreende; o idoso porque, envenenado pela longa coabitação consigo próprio, encara o falecimento como libertação. Ambos estão prontos a sair de si mesmos ou, utilizando uma expressão mais técnica, conhecer o estado de êxtase. E, em ambas as posturas, a alma alimenta a nobreza das próprias insuficiências: por um lado, a fragilidade de um psíquico ainda não posto à prova e vulnerável; por outro, a fragilização de um ego maltratado pelas circunstâncias, traumatizado por fracassos, esfolado ao vivo…» (…) «Quando já nada podemos fazer, quando nos transformamos num novelo de dores e nojo, quando qualquer revolta se torna mais cansativa do que o seu improvável cumprimento, quando o esforço de sobreviver implica a banalização do sofrimento, só então chegamos, naturalmente, ao despojamento interior que os místicos obtiveram desde sempre, por via espiritual.»
Esta não é decerto a voz de Eliade, de Ionesco, de Cioran. Mas é uma voz romena que o nosso tempo não pode ignorar, tal como o século XX não pôde ignorar as de Eliade, Ionesco e Cioran. Talvez porque também ela é nos transmite a palavra de um ser irremediavelmente injustiçado e só, ou seja, a palavra do Homem, a palavra de Job.
Teodor Baconsky, «O Poder do Cisma – Retrato do Cristianismo Europeu», Fim de Século, 2007, 125 páginas