António Rego Chaves
José Gil foi muito citado por ter sido considerado pelo semanário francês «Le Nouvel Observateur», no mês passado, como «um dos 25 grandes pensadores de todo o mundo». Ao lado do filósofo português surgiam o indiano Amartya Sen (Nobel da Economia de 1998), o alemão Peter Sloterdijk («Crítica da Razão Cínica»), o italiano Toni Negri («Império») e outras figuras de destaque da cultura contemporânea.
O currículo de José Gil, nascido em 1939, cujos livros se encontram publicados nos EUA, França e Itália, é notável: formou-se em Filosofia pela Sorbonne, foi professor universitário em Paris, EUA e Brasil, exerce hoje idênticas funções na Faculdade de Ciências Humanas de Lisboa, sendo autor de dezasseis obras, entre as quais «As Metamorfoses do Corpo», «Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações» e «Movimento Total. O Corpo e a Dança». Escreveu Eduardo Lourenço que, «retomando a temática de Deleuze, a da fenomenologia, José Gil escolherá como núcleo da sua reflexão o corpo, colocando-o como instância enquanto transcendental».
«Portugal, Hoje – O Medo de Existir», único dos seus textos inicialmente redigido na nossa língua, aproxima-se, nas palavras do seu autor, «mais do que os historiadores chamam “mentalidades” do que de qualquer outra matéria disciplinar. Mas recorre-se a apontamentos etnográficos, a factos e anedotas triviais, a conceitos psicanalíticos e filosóficos, a outros da ciência política, etc.» (…) «Nenhum pressuposto catastrofista ou optimista quanto ao futuro do nosso país subjaz ao breve escrito agora publicado.»
Se quiséssemos planear um ensaio subordinado a este tema, que nos ocorreria? Não sendo «estrangeirados» nem «castiços», talvez averiguar o que é Portugal em factos e números, determinando, depois, quais as razões do medo dos «condenados» a viver em tal sociedade. Seria essa, segundo cremos, também a atitude mais adequada caso pretendêssemos dissertar acerca do medo na Alemanha nazi, na URSS estalinista ou no Haiti de «Papa Doc», bem como em qualquer ditadura de países africanos, asiáticos ou latino-americanos. E julgamos que abordaríamos da mesma forma «o medo de existir» em todas as chamadas «democracias avançadas» do planeta, como os EUA, a Grã-Bretanha ou a França. Tudo porque a pressão económica, social e política exercida nestes países sobre grande parte da população – com especial relevo para os que se encontram à beira do desemprego, da marginalização, da exclusão –, não pode deixar de provocar neles um persistente medo em relação ao futuro que os espera.
Voltando a Portugal, ninguém põe em dúvida que este nosso país viveu nos últimos anos dominado pela «obsessão do défice», relegando para segundo plano as reformas estruturais exigidas pelo seu desenvolvimento. Não menos indiscutível, começou a viver uma crise acelerada após a «fuga» de Durão Barroso para Bruxelas e a «irresistível» ascensão de Santana Lopes a primeiro-ministro. Ainda não contestável, enfrenta agora, não apenas uma minúscula taxa de crescimento de 1,25 por cento em 2005, como o desemprego de pelo menos 6,3 por cento da população activa, isto é, meio milhão de cidadãos. Quanto ao nosso PNB por habitante, fica-se pelos 12 130 dólares (contra 13 720 da Grécia, 16 990 de Espanha, 24 770 da França, 25 250 da Alemanha, 26 960 da Irlanda, 28 350 do Reino Unido). Não estarão aqui sobejas razões para temermos e tremermos, mesmo sem o decrépito fantasma do salazarismo?
E já que falamos de fantasmas: por que motivo não recuperaríamos «As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares», de Antero de Quental, ou a «História de Portugal», de Oliveira Martins? Por que motivo não destacaríamos, auxiliados por Antero e na esteira de Herculano, as sequelas da Contra-Reforma, do absolutismo e das conquistas, opostas ao ideal do progresso, do federalismo republicano peninsular e do socialismo? Por que motivo não assumiríamos, com Oliveira Martins, que Portugal não é de facto um país europeu e que a nossa decadência, boa justificação para tantos e tantos medos, tem três culpados, o Jesuíta, o Inglês e o Bragança? Por que motivo, enfim, não relevaríamos o que há de inconfundível na evolução da nossa mentalidade?
José Gil segue outro caminho, sustentado que este é o país da «não inscrição» (desfasamento entre o que sentimos, o que pensamos e a realidade), onde não existe um espaço público (encontros, conexões reais de pensamento, de trabalho), marcado por um divórcio parcial entre conhecimento e democracia, propenso a pensar pouco e de uma forma rotineira, geral e superficial, correndo o risco de desaparecer, incapaz de se libertar do medo segregado pelo Estado Novo, que é um «medo de agir, de tomar decisões diferentes da norma vigente, de amar, de criar, de viver. Medo de arriscar.» Para o autor, o medo que reinava no regime salazarista era um medo vertical, circulava de cima para baixo e manifestava-se na submissão hierárquica; hoje, com a instauração da nossa frágil democracia, o medo é sobretudo horizontal, «o medo do rival, do colega, dos outros candidatos ao mesmo lugar, à carreira, ao emprego, quer dizer, o medo de todos os outros». Surge assim um espaço privilegiado «para o exercício de poder de pequenos déspotas (que podem surgir na administração, nos poderes públicos, nas empresas, nas escolas, nos partidos políticos)». Daí o culto da emulação, da competição, da concorrência, da agressividade, do «espírito de vencedor», da «auto-estima» – em poucas palavras, da obsessão de ultrapassar, se necessário cilindrando, os que são obstáculo aos nossos objectivos. Tudo ou quase tudo tende a ser catapultado para um qualquer «ranking», abrindo o caminho a múltiplas formas de inveja, de queixume e de ressentimento, bem como a inúmeros traumas, terrores e medos. Medos bem visíveis, nomeadamente em órgãos de comunicação social, onde «as vontades dissidentes, as linhas de fuga múltiplas que tentam escapar à rede pública mediática são esmagadas, rompidas e as vozes que fogem à norma são caladas.»
Há quase cem anos, Miguel de Unamuno confessou por carta a Teixeira de Pascoaes que Portugal lhe fazia lembrar Issacar, o filho de Jacob a quem são dedicados dois versículos, o 14 e o 15 do capítulo XLIX do Génesis. Transcrevo-os: «Issacar é um jumento robusto deitado no meio dos cerrados. Ele viu que o repouso era bom, que a terra era agradável, baixou seu ombro à carga e sujeitou-se ao trabalho escravo.» Talvez Don Miguel não hesitasse hoje em juntar ao Portugal da UE a sua Espanha e dezenas de outros países deste nosso mundo tão democrático e hipercivilizado…
José Gil, «Portugal, Hoje – O Medo de Existir», Relógio D’Água, 2004, 143 páginas