António Rego Chaves
Nasceu judia, Rachel Bespaloff, em 1895, na Bulgária, tendo-se toda a sua família mudado para Genebra dois anos depois. Aos vinte anos já convivia em Paris com Léon Chestov e, depois, com Daniel Halévy, Gabriel Marcel e Jean Wahl. Em 1942 emigra para Nova Iorque. Aí, em 1943, termina a sua pequena/grande obra (menos de cem páginas), «De l’Iliade». Escreve, na ocasião, a Gabriel Marcel: «Agarrei-me a Homero. Era o verdadeiro, o tom, o próprio acento da verdade. Considero a Bíblia e a Ilíada como livros verdadeiramente inspirados – e isto é para tomar à letra. Era uma purificação e, no negrume, uma luz que não vacilava.» Suicida-se, porém, em 1949.
Esta série de ensaios, que intitulou «Cheminements et Carrefours» (1938), abrange textos sobre Julien Green, André Malraux, Gabriel Marcel, Kierkegaard, Chestov e Nietzsche. Situados algures na inevitável encruzilhada aonde conduzem a grande literatura e a filosofia existencial (a distinguir de filosofia especulativa), todos os alvos da sua atenção possuem algo em comum, a saber: a impossível cisão entre o pensamento e a vida verdadeiramente vivida. Talvez Rachel Bespaloff vá mesmo longe de mais nesta senda, por exemplo quando faz depender algumas concepções metafísicas e religiosas de Kierkegaard do malogro do noivado com Régine Olsen, embora não lhe seja possível arquitectar algo de homólogo em relação a outros pensadores que são objecto da sua atenção. Mas o caminho, ainda que conduzindo a inúmeras bifurcações ou a becos sem saída, fica aberto para quem ousar trilhá-lo.
Escreveu em 1938 a Jean Wahl esta notável ensaísta: «Nunca pensei nisso mas é verdade que invoco Chestov contra Marcel, e Nietzsche contra Chestov… e também é verdade que por vezes pus Tolstoi acima do debate. Mas a minha última referência, a minha referência última, não é Tolstoi, é a Escritura, os profetas.» E não hesita, por outro lado, em atribuir à sensibilidade – e nomeadamente à música – um papel crucial que poucos filósofos lhe concederiam em suas tradicionais «reservas de caça»…
Chamam-nos a atenção, para começar, as «Notas sobre Julien Green», mas com a ressalva de, na época em que as escreveu, a autora não conhecer o «Diário» do escritor, porventura a sua obra-prima, que só começou a ser publicado em 1938 e apenas teria fim sessenta anos depois. Não lhe escapa, porém, muito do essencial, bem evidente nas seguintes considerações: «A monstruosidade da vida quotidiana no estado de isolamento exerce sobre Green uma espécie de fascínio. Ele não pode desviar o seu olhar da brutal nudez da vida interior. Os monstros de que povoa o seu universo desvendam a íntima cumplicidade que os une a nós na rotina odiosa dos dias.»
Quanto a Malraux, a imaginação de Rachel Bespaloff, por mais ousada que fosse, não poderia alcançar a ampla dimensão das «traições» que o autor de «Os Conquistadores» (1928), «A Condição Humana» (1933) e «A Esperança» (1937) cometeu perante si próprio e seus companheiros, depois de ter combatido – do lado «certo» – na Guerra de Espanha, até chegar aos Campos Elísios, na sequência da «crise» de Maio de 68, abraçado e amparado por toda a direita francesa «colada» a De Gaulle. Adiante.
Os ensaios sobre Gabriel Marcel, Kierkegaard e Chestov perante Nietzsche ocupam mais de metade desta obra, sem dúvida meritória pela profundidade dos seus textos. Ressalvemos, no entanto, que, no que se refere ao autor de «Assim Falava Zaratustra», as citações provêm sobretudo do malfadado «A Vontade de Poder», texto póstumo de Friedrich Nietzsche que, como hoje é público, foi «montado» e «corrigido» – vale dizer, falsificado – a seu bel-prazer por sua irmã nazi, Élisabeth Foerster-Nietzsche.
Sublinha Rachel Bespaloff: «O metafísico, diz Gabriel Marcel, é comparável a um doente que procura uma posição. Não hesitemos em ver nesta comparação uma definição da própria metafísica. De imediato, ei-la colocada numa situação cuja urgência lhe proíbe qualquer espécie de adiamento.» Por outras palavras, é necessário que nos tornemos conscientes de que não existe um conhecimento ontológico concreto obrigatório para todos os seres humanos, válido de uma vez para sempre. O pensamento é infatigável, não há «verdades gerais e necessárias». A metafísica será, pois, comparável a um doente acamado que procura uma posição no colchão, sem encontrar o ansiado conforto? Pois então que não se cure – deseja-lhe a autora.
Kierkegaard centra a atenção da ensaísta. Cita-o, como que anunciando o seu próprio suicídio: «Porque é que ninguém nunca regressou dos mortos? Porque a vida não sabe cativar como a morte, porque a vida não possui a persuasão como a morte. A morte persuade às mil maravilhas, desde que lhe dêem a palavra sem replicar; nesse caso ela convence instantaneamente, e nunca ninguém teve uma palavra a objectar-lhe ou suspirou depois pela eloquência da vida.» Acrescenta uma observação de Chestov: «As verdades gerais e necessárias não somente não apoiam o homem, caído numa situação sem saída, mas fazem tudo, pelo contrário, para o esmagar definitivamente.»
Apresenta-nos, então, algumas das suas mais luminosas páginas, onde, apoiada em Kierkegaard, nos fala do «Job que, nos seus tormentos, ousa contestar Deus». «A recusa de Job, diz-nos, constitui o mais violento desafio à infinita resignação.» (…) «O seu grito, a sua adjuração, partem da solidão absoluta em que o homem, fechado no seu sofrimento, aprende quanto custa renunciar aos socorros humanos.» E compara dois «casos» bíblicos aparentemente incomparáveis: «No plano da fé, a resignação de Abraão ao esperar que, em virtude do absurdo, Isaac lhe será entregue, e o protesto de Job, que exige, em virtude do absurdo, que Deus lhe responda, equivalem-se: a esperança insensata de Abraão vai ao encontro da cólera de Job.» (…) «O que Kierkegaard põe em relevo, tanto na devoção absoluta de Abraão como na oposição obstinada de Job, é, antes de tudo, o heroísmo de serem eles próprios perante Deus.»
«Ser ele próprio perante Deus»: eis a chave para partir à descoberta do «in-divíduo» Kierkegaard, o maior «inimigo íntimo» de Hegel e de todos os sistemas filosóficos.
Rachel Bespaloff, «Cheminements et Carrefours», Vrin, 2004, 253 páginas