Depois de Auschwitz
António Rego Chaves
Não se lêem sem emoção as derradeiras páginas deste livro de Viktor Frankl (1905-1997). Nelas, o notável psiquiatra e psicanalista vienense aborda a questão de Deus da sua perspectiva íntima, que é a de quem esteve internado em Auschwitz e viu morrer todos os seus entes queridos, a mulher amada, o pai e a mãe, em campos de concentração nazis. Escreve:
«A minha religiosidade não morreu em Auschwitz, nem depois de Auschwitz. Eu, pessoalmente, creio que a crença em Deus ou é incondicional ou não é crença. Se é incondicional, poderá enfrentar o facto de que seis milhões de pessoas morreram no holocausto nazi. Se não é incondicional, ver-se-á derrubada por um só menino que veja morrer, recuperando o argumento utilizado uma vez por Dostoievski.» E acrescenta: «Certo é que entre os que passaram pela experiência de Auschwitz, o número de pessoas cuja vida religiosa se tornou mais profunda (apesar dessa experiência, não graças a ela) ultrapassa largamente o número de pessoas que abandonaram a fé depois dessa experiência.»
Mas que se entende por religião? Albert Einstein afirmava: «Ser religioso consiste em ter encontrado uma resposta à pergunta: ‘Qual é o sentido da vida?’». Wittgenstein pouco diferia: «Crer em Deus é comprovar que a vida tem um sentido.» Viktor Frankl não se afasta desta via: a religião é o «desejo de dar sentido à vida». Entenda-se: «o sentido último».
E rezar? Aqui a resposta do autor surpreenderá muitos: «Creio que não só há diálogos interpessoais, como há diálogos intrapessoais, diálogos internos, connosco próprios. Por outras palavras, os diálogos não têm de ocorrer entre um ‘ego’ e um ‘tu’, também podem ocorrer entre um ‘ego’ e um ‘alter-ego’. Neste contexto, precisamente, gostaria de vos oferecer uma definição muito particular de Deus a que vos confesso que cheguei com a idade de quinze anos. É a seguinte: Deus é o interlocutor dos nossos solilóquios mais íntimos. Quer dizer, cada vez que te diriges a ti mesmo da forma mais honesta possível e em completa solidão, a entidade a quem te estás a dirigir pode muito bem chamar-se Deus. Como se pode verificar, esta definição evita a fronteira existente entre uma concepção de mundo teísta e uma ateísta. A diferença entre ambas só aparece mais tarde, quando a pessoa que não é religiosa insiste em que os seus solilóquios são apenas isso, monólogos consigo próprio, e a pessoa que é religiosa interpreta os seus diálogos tão reais como dirigidos a alguém que não é ele próprio.»
Recorda Viktor Frankl: «No meu livro ‘O homem em busca de sentido’ expresso a convicção de que existe uma barreira entre o mundo humano e o divino, uma barreira que impede que o homem possa realmente falar de Deus. Neste contexto, afirmei que o homem ‘não pode falar de Deus, mas pode falar a Deus. Pode rezar’. Haveria que sublinhar, em todo o caso, que é possível elaborar a oração na plena consciência da insuperável insuficiência do conceito de Deus. Como exemplo, proponho uma oração hebraica dedicada à morte, Kaddish, e de forma particular um parágrafo onde se afirma que ‘Deus está acima de todos os cantos e hinos, de todos os louvores e súplicas que se possam fazer a partir do mundo’.»
Apesar das teses veiculadas pela obra de Freud «O Futuro de uma Ilusão», não se pode afirmar que Viktor Frankl conteste o fundador da psicanálise. Embora este tenha ali afirmado que «a religião é a neurose compulsiva universal da Humanidade», considerou, em 1927, numa carta dirigida ao pastor luterano Oskar Pfister, que, «em si, a psicanálise não é religiosa nem irreligiosa. É um instrumento sem partido, do qual podem servir-se religiosos e laicos, desde que o façam apenas ao serviço dos que sofrem.»
A logoterapia, o método (associando a psicanálise freudiana, a psicologia individual de Alfred Adler e a fenomenologia heideggeriana) praticado por Viktor Frankl, é um meio de ajudar o paciente a encontrar um sentido para a sua vida. Procura-se que o indivíduo se esqueça de si mesmo, seja servindo uma causa, seja concentrando a sua atenção numa actividade artística, seja na pessoa ou pessoas amadas. A questão mais delicada reside, porém, na circunstância de que o psiquiatra não pode ensinar ao paciente qual será o significado da sua vida, é o paciente que tem, não tanto de o inventar, mas de o descobrir, utilizando essa aptidão a que Max Scheler chamou capacidade de contemplar livremente o possível e que distingue os homens dos animais. Numa sociedade em que cada vez existe mais gente obcecada pelo sentimento da falta de sentido da vida, por vezes em situações-limite de dor, encontram-se seres que logram vencer a sua neurose consagrando-se a SERVIR outros. O autor conta o seguinte:
«Poucos anos depois da Segunda Guerra Mundial, um médico examinou uma mulher judia que usava uma pulseira feita de dentes de criança engastados em ouro. ‘Bonita pulseira’, disse-lhe o médico ‘Sim’, respondeu a mulher, ‘este dente era de Miriam, este outro de Esther, e este outro de Samuel…’ Mencionou todos os nomes de suas filhas e filhos, referindo a idade de cada um deles. ‘Nove filhos’, acrescentou, ‘e todos eles acabaram na câmara de gás’. Impressionado, o médico perguntou: ‘Como pode viver usando essa pulseira?’. Tranquilamente, a mulher respondeu: ‘Agora sou a responsável por um orfanato em Israel’.»
Em última instância, um médico não pode ensinar o significado da vida aos seus pacientes. Mas pode, isso sim, dar-lhes talvez bem mais: um exemplo existencial e espiritual, o exemplo da sua própria vida consagrada àqueles que dele necessitam. Um exemplo de solidariedade como o próprio Viktor Frankl, à semelhança da mulher que usava a pulseira com dentes dos filhos, ofereceu ao mundo depois da inominável experiência vivida em Auschwitz.
Viktor E. Frankl, «El hombre en busca del sentido último – El análisis existencial y la conciencia espiritual del ser humano», Paidós, 2012, 236 páginas