Um estrangeiro no seu país
Ao traduzir o Eclesiastes, Damião de Góis sabia os riscos que corria. O seu trabalho só agora foi publicado em Portugal…
António Rego Chaves
Damião de Góis, apanhado pelas malhas do Santo Ofício e posteriormente aprisionado no Mosteiro da Batalha, apareceu morto, sob suspeita de ter sido assassinado, na sua casa de Alenquer, em 30 de Janeiro de 1574. Escreveu o historiador Veríssimo Serrão, em bela e melancólica síntese, já lá vão quatro décadas e os tempos iam duros para os que se batiam neste país pela liberdade de pensar: «Assim faleceu o homem português que moldara os seus quadros mentais numa visão europeia do mundo, dentro da linha erasmiana de tolerância e dignificação dos valores humanos que o homem de Roterdão soubera traçar; mas, para tristeza nossa, esse belo ideal de vida não encontrou no ambiente português as necessárias condições de existência, não se tornando possível a criação de um ‘humanismo nacional’, que bem poderia ter aberto novos domínios à nossa cultura quinhentista.»
Estas certeiras afirmações de Veríssimo Serrão encontram-se hoje amplamente confirmadas por mais um «pormenor» da obra de Damião Góis, descoberto por acaso na biblioteca de All Souls College, há pouco mais de dois anos, por T. F. Earle, professor de Estudos Portugueses da Universidade de Oxford: a tradução, impressa em Veneza, no ano de 1538, do Eclesiastes. A existência do texto nunca foi dada a conhecer no século XVI, por sinistros mas bem conhecidos motivos, o mais evidente dos quais foi, obviamente, a ameaça constituída pela zelosa actividade da todo-poderosa Santa Inquisição, sempre atenta a quaisquer desvios pretensamente heréticos. Ora, em que consistiria, de facto, o grave atentado cometido por Damião de Góis contra a «santa fé católica», ao traduzir e comentar em português um dos mais célebres livros da Bíblia judaica?
Em primeiro lugar, a leitura da Bíblia, na Contra-Reforma, não seria vista com bons olhos em Portugal, pois poderia denunciar condenáveis desvios na direcção de Lutero e das consciências individuais, dado que se punha assim ao alcance de um maior número de leitores um texto que talvez muitos quisessem reservar apenas a uma ínfima elite cultural capaz de o decifrar em latim e à luz tutelar de São Jerónimo. Depois, o nosso tolerante compatriota estava longe de se cingir, na tradução e nas notas do seu trabalho, à interpretação da Vulgata susceptível de ser aprovada pelas autoridades eclesiásticas da época. Recorrera, não apenas ao auxílio de comentadores protestantes, mas – supremo delito –, de alguns eminentes vultos da exegese judaica, como o «doutíssimo hebreu» Abraham Ibn Ezra. Numa época em que judeus e cristãos-novos eram implacavelmente perseguidos pela sanha dos inquisidores, só um homem de pouca ou nenhuma prudência se atreveria a tornar público este condenável «colaboracionismo» de um «bom» católico com o «inimigo» seguidor da lei de Moisés… Ou, utilizando um outro registo, porque a mau entendedor meia palavra não basta: a tradução continha, implícita, «incontornável», uma mensagem ecuménica que até superava a do seu amigo Erasmo, por não acolher quaisquer preconceitos contra o judaísmo, e que só muitos séculos mais tarde viria a ser ouvida na Europa – valha a verdade com grande desconfiança e hipócrita prudência das alas mais tradicionalistas da Igreja Católica…
Damião de Góis foi, portanto – sabe-se agora – o único autor de uma tradução de um livro da Bíblia feita para português durante as épocas do Humanismo e da Contra-Reforma. Comenta o insuspeito investigador T. F. Earle: «Tomou posição face ao erasmismo, ao luteranismo e à tradição hebraica da exegese bíblica com uma independência que muito o honra. Mas é sobretudo a sua tolerância numa época intolerante que chama a atenção do leitor. Na Europa de 1538, tal característica era de facto muito pouco comum.» E o erudito inglês sublinha: «Portugal tem sempre sido considerado um caso singular, um país profundamente católico e cristão onde, apesar disso, não havia no século XVI uma Bíblia na sua própria língua.»
A mensagem humanista de Damião de Góis é ainda mais evidente se sublinharmos que, junto ao texto português do Eclesiastes descoberto na Universidade de Oxford, se encontrava também a sua tradução da obra de Cícero De Senectute: é que o ilustre português quinhentista tinha por certo – também aqui ultrapassando o sempre cauteloso Erasmo – que os filósofos antigos, gregos e romanos, «ainda que não fossem alumiados de nossa fé, nem por isso careceram das mesmas doutrinas e preceitos que a sagrada escritura nos ensina a bem viver». Seria mais uma acha deitada na fogueira da Inquisição que, decerto, não deixaria de usar tal desrespeito pela «verdade absoluta» do catolicismo contra o «estrangeirado» português que ousava comparar míseros pensamentos demasiado humanos com a palavra revelada por Deus às suas humildes criaturas. Enfim, como diz Damião de Góis ao apresentar o «argumento» do texto bíblico que traduziu, todas as coisas deste mundo são «vãs, mudáveis, e transitórias, excepto o amor, e temor de Deus, e guarda de sua lei». Mesmo – ou sobretudo – para os inquisidores do século XVI e todos os que se lhe seguiram e seguirão…
Damião de Góis, «O Livro de Eclesiastes», Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, 189 páginas
Publicado no «Diário de Notícias» em 3.12.2002