António Rego Chaves
Tudo foi já dito sobre o Holocausto? Julgamos que sim. Mas há olhar e ver, há ouvir e pensar. Por isso este não será um livro inútil. Antes de mais, pela negativa, devido ao prefácio de Esther Mucznik, que apresenta o Holocausto como mera questão entre alemães e judeus – ignorando milhões de ciganos, homossexuais, pessoas com deficiências físicas ou mentais, Testemunhas de Jeová, sindicalistas, sociais-democratas, comunistas, intelectuais e aristocratas polacos, grupos civis russos e sérvios, habitantes de numerosas aldeias em diferentes locais da Europa, todos eles também perseguidos e aniquilados pelos nazis. A vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa bem pode louvar Aristides de Sousa Mendes e outros diplomatas portugueses, como Sampaio Garrido, Teixeira Branquinho, José Luís Archer ou Lencastre e Menezes, que concederam sem autorização vistos a judeus durante a Segunda Guerra Mundial, comprometendo as suas carreiras e vidas pessoais. De lamentar é que nem uma só das suas palavras indicie que o Holocausto não foi apenas «o sofrimento intenso de um povo», ou seja, segundo sustenta, aliás ao arrepio do pensamento do autor, Jean-Michel Lecomte, «o mal absoluto». A verdade, porém, é que o nazismo não exterminou apenas judeus – como, de resto, esta obra releva página a página. Os judeus foram, sem dúvida, os grandes sacrificados, mas estiveram longe de ser apenas eles as vítimas de Hitler. Melhor teria andado Esther Mucznik, a bem da verdade histórica, se não o tivesse esquecido, tanto mais quanto o Conselho da Europa, com esta oportuna edição, quis auxiliar os professores a ensinar com rigor aos seus alunos o que foi de facto o Holocausto…e decerto também o que ele de facto não foi.
Adiante. Sabido que fontes credíveis estimam num total de pelo menos oito milhões o número de vítimas do Holocausto, incluindo dois terços da população judaica da Europa, não pode ser ignorada a grande responsabilidade do cristianismo no surgimento e na difusão do anti-semitismo hitleriano. Judeus e comunistas foram os alvos privilegiados da propaganda nazi, mas a definição racial de «judeu», chegando a envolver os que tinham pelo menos três avós judaicos, desafiava qualquer critério científico. Logo em 1933, ao ser criado o campo de concentração de Dachau, inicialmente destinado a prisioneiros políticos, judeus foram também internados no mesmo espaço, apenas por serem judeus, isto é, considerados «não arianos», ou seja, «seres inferiores». Tudo isto é bem sabido, mas nem sempre se faz acompanhar pela devida contextualização internacional as dificuldades que os judeus tiveram em emigrar, seja da Alemanha, seja da Polónia ou de outros países europeus, devido às políticas restritivas ocidentais. Atentemos no que nos sublinha, a este respeito, o autor:
«Os Estados Unidos recusaram-se a aumentar as quotas [de imigração] que tinham sido estabelecidas. A Suiça insistiu em que o termo ‘judaico’ fosse adicionado ao passaporte dos judeus alemães [e em 1942 repatriou 9751 judeus para França, condenando-os a uma morte certa, enquanto os bancos helvéticos conservavam depósitos alemães de acções, obrigações, dinheiro e ouro pilhados aos judeus]». Em 1938, a França abriu um campo para albergar «estrangeiros indesejáveis», onde os judeus eram mantidos presos em conjunto com os ex-membros das Brigadas Internacionais espanholas. A Grã-Bretanha foi ao ponto de aprisionar judeus durante a guerra, com o fundamento de que vinham de um país inimigo.» (…) O mesmo país, «que era responsável pelas questões palestinianas na Sociedade das Nações, tentou mesmo circunscrever tentativas de povoamento judaico, por meio de um Livro Branco, publicado em 1939, que limitava drasticamente o número de novos emigrantes a quem seria permitida entrada na Palestina.» (…) «A Cruz Vermelha foi informada logo no início [do extermínio dos judeus], mas preferiu não falar sobre o assunto. A Igreja Católica, que era uma força poderosa na Polónia, adoptou uma atitude semelhante à do Papa Pio XII. A indignação era abafada pelos sentimentos anti-semitas e, no caso do Papa, por uma clara afinidade com a Alemanha.» (…) «Resumindo, o mundo inteiro sabia o que se estava a passar, mesmo sem grandes pormenores, desde 1941-1942. Se alguém pode ser acusado de passividade, não são os judeus europeus, que foram apanhados numa armadilha, mas sim o resto do mundo, nomeadamente os Aliados, a diáspora e a Palestina.» Quanto a Portugal, honra lhe seja feita e fossem quais fossem as razões das ambiguidades de Salazar, fechou «mais ou menos» os olhos ao trânsito dos refugiados judeus ou de resistentes que desejavam juntar-se aos Aliados.
Vejamos, agora, o número de mortes. Segundo as duas fontes julgadas pelo autor mais credíveis, Raul Hilberg e Sir Martin Gilbert, pelo menos entre cinco milhões e cem mil e cinco milhões e setecentos e cinquenta mil judeus; no mínimo entre duzentos mil e duzentos e vinte mil ciganos; duas mil crianças alemãs e dezassete mil adultos deficientes físicos ou mentais, assim como várias centenas de milhares nos territórios ocupados; dezenas de milhares de homossexuais; entre duas mil e cinco mil Testemunhas de Jeová, a maioria das quais alemã, num universo estimado de dez mil; centenas de milhares de opositores políticos de todas as tendências, incluindo muitos republicanos espanhóis internados nos campos em França e as elites polacas; milhões de civis e prisioneiros de guerra soviéticos, transferidos para serem gaseados nos campos de extermínio. Revoltante que, durante dezenas de anos, só os judeus tenham sido considerados vítimas. Revoltante, também, que assistamos ainda hoje à discriminação dos ciganos em países europeus. Revoltante, ainda, que muito poucos países reconheçam os homossexuais como vítimas e os historiadores raramente os mencionem no contexto do Holocausto. Revoltante, enfim, que o «mal absoluto» pareça ter tido, para certos investigadores e «fazedores de opinião», o condão de eclipsar de vez milhões de pretensos «males relativos», dir-se-ia que insignificantes…
Jean-Michel Lecomte, «Ensinar o Holocausto no Século XXI»,Via Occidentalis, 2007, 232 páginas