INCENSURÁVEIS
INCENSURÁVEIS
António Rego Chaves, licenciado em Filosofia, foi jornalista e repórter internacional, de 1968 a 2002, no Diário Popular e no Diário de Notícias, onde também desempenhou as funções de editorialista e colunista, além de ter sido editor e autor de todo o texto da obra Imagens do Século no Mundo. Colaborou, antes do 25 de Abril, na revista Seara Nova e no semanário O Comércio do Funchal. Em 1975 desempenhou a sua actividade jornalística na República da Guiné-Bissau, sendo um dos fundadores do trissemanário Nô Pintcha. Na extinta página de Livros, do DN, e no seu também extinto suplemento DNa, assinou grande número de recensões críticas e ensaios. Escreveu de 2004 a 2012 sobre livros, às sextas-feiras, no suplemento Weekend do Jornal de Negócios, em cuja ficha técnica on-line figurou como colunista. Publicou Vinte e Quatro Diálogos Bíblicos (DNa), Encontros em Florença (DNa), Livros com Ideias Dentro (Campo das Letras) e Memorial (Letras Lavadas edições). Juntamente com Ana Marques Gastão e Armando Silva Carvalho, é autor de Três Vezes Deus (Assírio & Alvim).
Os últimos escritos poéticos encontram-se publicados em http://sites.google.com/site/incensuraveisrecentes/
MEMÓRIA DO MEU «MEMORIAL»
François Villon, Le Testament: «Qui meurt a ses loix de tout dire.»
O meu querido Kant – que me ensinou a não saber quase tudo o que não sei de filosofia – escreveu um dia, na sua «Metafísica dos Costumes», estas frases de cortar a respiração: «O autoconhecimento moral, que procura sondar o abismo do coração até às suas profundezas mais escondidas, é o começo de toda a sageza humana». E, um pouco mais adiante: «Só a descida aos infernos do conhecimento de si próprio abre o caminho para a apoteose.» Aqui, as traduções diferem: eu prefiro esta, apoteose, a uma outra, deificação, que evoca e invoca anacronicamente a Grécia e Roma antigas, mas não o bendito Iluminismo da «Crítica da Razão Pura».
Fixemos isto: «os infernos do autoconhecimento, do conhecimento de si». Quanto ao «conhece-te a ti mesmo» há milénios que se fala dele, pelo menos desde Tales de Mileto, desde Heraclito de Éfeso e, honra lhe seja feita, desde o imenso Sócrates, sacrificado pelo dogmático pensamento politicamente correcto imperante na Atenas dos escravos, dita democrática.
Adiante, agora. Passemos ao século XIX, a Sainte-Beuve, e ao século XX, a Proust. Sainte-Beuve? Pois, esse mesmo, objecto da ira póstuma de Proust. E que tinha feito ele, o delinquente, falando da obra de tantos outros? Pois, na opinião do incansável, terno e eterno indagador do tempo perdido, atrevera-se a sugerir esta enormidade: que não se entende bem o texto do escritor sem saber muito acerca da sua vida. Ó da guarda! Proust não lhe perdoou, mesmo já morto o grande crítico literário. E vá de dizer que não é assim. Abaixo o «biografismo»! Viva a literatura pura e dura!
Não vamos entrar aqui nesta querela de mui preclaros fantasmas gauleses. Mas, em verdade vos digo: só me transformei em autor porque tenho uma história. Transformação episódica? Escritor esporádico? Poeta bissexto? Seja, tudo isso e bem mais do que isso. Vivi, se vivi, uma vida de ser humano. Amor, Morte, Deus – por cá passaram, pelo meu espírito. Agora foi preciso olhar o passado – e o presente – de frente. Pois, a realidade, a dura realidade que gere a dureza da vida. Tentei chegar, como dizia Kant, às «profundezas do coração». Do meu coração. E aqui está o «Memorial».
É uma confissão, à maneira de Santo Agostinho, na esteira de Rousseau? Ora, não é Santo Agostinho quem Deus não quer, não existe Rousseau sem Voltaire que se veja. Muito humildemente – mas certo do que estava a fazer, não quis ser escrevedor sem tripas – fui-me a ela, à minha vida, pois então, e baralhei sem piedade o vivido e o sonhado, o conhecido e o desconhecido, a dor e a graça. Fui-me a ela, à minha vida, sem medo, com alegria, mas sabendo os riscos que iria correr. Por exemplo, o de o livro não ser lido. Ou o de o livro ser lido por alguém menos perplexo do que eu. Ou o de eu próprio, carne, osso, alma, ser barbaramente agredido, sabe-se lá bem porquê, talvez por ter pisado uma linha vermelha que os meus contemporâneos traçaram para fixar os limites onde me querem autorizar a respirar. Enfim, não fiz uma confissão, saiu-me mesmo o meu testamento. Testamento de pensamentos encontrados ou por encontrar, de palavras simples ou aptas a causar dores de cabeça, de actos ocultos ou confessados.
E aqui estou, e aqui fico à vossa disposição, senhoras, senhores, oferecendo o meu usado corpo pelo tempo a balas certeiras. Seja o que vós quiserdes!
FRASES
Nietzsche segundo Alfred Adler: «Um cristão ateu que reinventou a ternura franciscana.»
Lido em Somerset Maugham: «Alguns procuram o Caminho no ópio e outros em Deus, alguns no whisky e outros no amor. Tudo é o mesmo Caminho e não leva a parte alguma.»
«Os velhos já não vivem. Representam/De vivos,muito mal... [...] Ser velho é covardia.» (Teixeira de Pascoaes, «D. Carlos»)
«Não se pode estar zangado com Deus e, ao mesmo tempo, não acreditar n'Ele.» (De uma personagem da série «Dr. House»). Comento: Pascal talvez tivesse preferido dizer que «só é possível estar zangado com Deus quando se tem Deus dentro de nós.»