António Rego Chaves
Três poetas de duas gerações, Rainer Maria Rilke (Praga, 1875), Boris Pasternak (Moscovo, 1890) e Marina Tsvétaïeva (Moscovo, 1892) «encontram-se» em 1926: o austríaco, talvez «o último dos poetas imortais», incomparável explorador do «espaço interior do mundo», já publicou então as suas mais célebres obras («Os Cadernos de Malte Laurids Brigge» (1910), as «Elegias de Duíno» (1923) e «Os Sonetos a Orfeu» (também em 1923); quanto aos dois jovens russos, estão ainda longe de ter escrito e ver editados os seu textos maiores, ainda que os poemas de Boris já não sejam desconhecidos de Rilke, que até os considera «belos» e «impressionantes» em carta dirigida ao pai do escritor, o pintor Leonid Pasternak. Insólito e profundo «encontro», este, embora nunca vá além de escassas cartas de Rilke para Boris e sobretudo para Marina, enquanto se multiplica a correspondência entre estes últimos. Não é apenas de literatura que se trata, ou nem mesmo é sobretudo de literatura que se trata: jogam-se bem mais do que palavras nestas missivas, que não raro parecem estar à beira de revolucionar a existência de todos os seus autores. Só Rilke sabe que, no que lhe diz respeito, isso é impossível: extremamente reservado no que se refere à sua saúde, nunca abordará com clareza a gravidade da doença de que sofre nem os tormentos que enfrenta. Apenas alguns, muito poucos, sabem o que se passa, como a sua velha amiga íntima Lou Andreas-Salomé, o filósofo Rudolf Kassner ou o poeta Jules Supervielle, a quem anunciará, poucos dias antes de morrer, que se encontra «gravemente doente, dolorosamente, miseravelmente, humildemente doente».
Conhecido o conteúdo da carta de Rilke a seu pai, Boris emudece de espanto, chora de alegria, apressa-se a contactar com o seu «grande e muito querido poeta», escrevendo: «Sinto-me vosso devedor do fundo do meu carácter e da minha própria existência espiritual. Ambos são obra vossa.» E «apresenta-lhe», de seguida, Marina, «uma poetisa nata, um grande talento da raça de uma Desbordes-Valmore».
Os dados estão lançados. Boris não enviará a Rilke mais nenhuma carta nem nunca chegará a vê-lo depois deste contacto. Quanto a Marina, arrebatada, intempestiva, logo assume o comando das operações: como se a doença de Rilke não existisse, chama-o para o mundo onde habita, trata-o por tu, perturba a «solidão bendita» do seu «preferido entre todos na terra e depois da terra (acima da terra)». (…) «O que espero eu de ti, Rainer? Nada. Tudo. Que me concedas em todos os momentos da minha vida eu poder erguer os olhos para ti – como para uma montanha que me protege (um anjo-da-guarda de pedra!)» (…) «Eu irei escrever-te – quer tu queiras quer não.»
O poeta não parece assustado com o vigor da sua desconhecida correspondente, respondendo-lhe: «Hoje, no hoje eterno do espírito, hoje, Marina, recebi-te no meu coração, na minha consciência que toda ela freme por ti, pela tua chegada…» (…) «Mergulhaste as tuas mãos, Marina, sucessivamente em dádiva e união, mergulhaste as tuas mãos no meu coração como no tanque de uma fonte que jorra: e agora, enquanto as mantiveres lá dentro, o seu conteúdo continuará a correr para ti… Aceita-o.» (…) E ela, citando-o: «‘Tocamo-nos um ao outro, como? Por golpes de asa.’ Rainer, Rainer, tu disseste-me isso sem me conhecer, como um cego (um vidente!), ao acaso. Não existem melhores atiradores que os cegos!»
Quanto à relação com Boris, ela é, há vários anos, complexa. Já no início de 1925, Marina, que vivera antes sucessivas paixões extraconjugais (heterossexuais e homossexuais), confessara à sua amiga Olga Tchernova: «Eu não era capaz de viver com B. P. Sei-o muito bem.» E apontava duas razões: «Impossibilidade trágica de abandonar Serioja (Serge Efron, o marido) e, segunda razão, não menos trágica; por amor, organizar uma existência, fazer da eternidade um fraccionamento de dias. Não era capaz de viver com B. P., mas quero um filho dele, pelo qual ele viveria por meio de mim. Se isso não acontecer, então a minha vida também não acontecerá, nem os seus objectivos.» Agora, em 1926, reafirma-lhe a sua decisão, mas com um novo argumento: «Eu jamais poderia viver contigo, e a culpa não se deve à incompreensão mas à compreensão. Sofrer por causa da maneira de ser do outro que é igual à nossa, eis uma humilhação que eu não conseguiria suportar.» Quanto a (in)fidelidades, não poderia ser mais clara: «Fidelidade, só na admiração. Mas a admiração sufocava o resto, e o outro tinha dificuldade em amar, e eu também, de tal modo eu a afastava do amor.» Para Boris a questão põe-se noutros termos: «resistir à tentação» de uma relação extraconjugal. Marina indigna-se, recusa-se a aceitar, como o austero Pasternak, o ditame de acordo com o qual «aquele que olhar uma mulher com concupiscência já pecou com ela no seu coração».
Tsvétaïeva não desiste, entretanto, de conduzir Rilke para o seu terreno: «Quero dormir contigo – adormecer e dormir contigo.» À sua maneira, ser-lhe-á fiel mesmo para além da morte do poeta – vitimado pela leucemia a 29 de Dezembro de 1926 –, escrevendo sobre ele ou procurando na teosofia e na transmigração das almas a esperança de um reencontro. Como diz o seu biógrafo Henri Troyat, a poetisa «tenta negar a importância do destino carnal de um ser, já que, pelo pensamento, ele continua a reinar sobre aqueles que o conheceram e amaram». Reinará também, ainda durante mais algum tempo, sobre os laços que a prendem a Boris. Mas, em 30 de Dezembro de 1929, escreve-lhe: «Tu desapareceste em mim como o tesouro do Reno – e antes do dia combinado. Se morrer sem ter conhecido isso contigo, o meu destino não se cumprirá, porque tu és a minha última esperança de mim toda inteira, aquela que é e que não poderia ser sem ti.» E, a 25 de Janeiro de 1930, conclui: «Não estávamos destinados a ser um para o outro o tema das nossas vidas; no Julgamento Final, não será por mim que tu irás responder (que força na expressão, não estar destinados, que fé!). Eu só consigo reconhecer Deus por meio do não-acontecido.»
Rilke, Pasternak, Tsvétaïeva, «Correspondência a Três», Assírio & Alvim, 366 páginas, 2006