António Rego Chaves
Era um místico, Vaslav Nijinski, «o palhaço de Deus». Mais rigorosamente diríamos, segundo Maria Jorge Vilar de Figueiredo, sua diligente tradutora, que ele se considerava, medido a preceito o vocábulo russo utilizado nos «Cadernos», «o bobo de Deus». Palhaço ou bobo, tanto monta? Não será bem assim, porque o bobo só conhece um único amo. No caso, «Deus-Pai Todo-Poderoso, criador do Céu e da Terra».
Eis a obra que, durante dezenas de anos, nos habituámos a conhecer como «O Diário de Nijinski». Mas escolher entre as designações «Cadernos – O Sentimento» ou «Diário» não será, decerto, um problema dramático. Dramático é que o texto aqui fica, para zurzir no presente e no futuro todos os Diaghilev (prepotentes empresários), os Lloyd George (políticos militaristas), os Fränkel (analistas de doenças psíquicas). E, sobretudo, as almas gémeas da delicodoce Torquemada desta sórdida história, a própria mulher, Romola, que, a páginas tantas, porque precisava de dinheiro e não atendeu a ponta de escrúpulos, decidiu censurar, mutilar, «reescrever» e publicar o que marido tinha gerado com o sangue da sua incomensurável angústia, do seu medo dos humanóides que o cercavam. O tempo, porém, foi implacável: Nijinski, nesta edição, até que enfim em (óptimo) português de Portugal, revela-se tal como foi: não apenas uma espécie de martirizado São João da Cruz dos primórdios do século XX, mas também um pertinaz onanista, um frequentador habitual de prostitutas, um homem violento que batia quando calhava na legítima esposa. Fica assim esboçado a carvão – negro, bem negro, mas sobre fundo branco –, o perfil nu e cru, sem quaisquer retoques puritanos, daquele que foi um dos maiores bailarinos e coreógrafos do século XX. E, sublinhe-se, os traços tornaram-se agora bem mais verosímeis do que as delicadas linhas angelicais transmitidas na referida versão expurgada que era conhecida desde 1936, em edição inglesa, da responsabilidade de Romola Pulszky, o cônjuge-falsário.
Adiante, então, depois de saudar a prestigiada editora «Assírio & Alvim» pela publicação desta obra ímpar criada por um homem que, não sendo um escritor assumido, talvez tenha assinado na sua época um dos mais pungentes textos dignos de ser lidos e relidos durante o século XXI. O «pregador» Nijinski que, «com um enorme crucifixo ao peito, exortava os habitantes de Saint-Moritz a irem à igreja e a levarem uma “vida direita”», fosse ele esquizofrénico ou maníaco-depressivo, era um homem do «sentimento». Do «sentimento», não do «intelecto». Por isso rumava direito ao amor humano, espiritual ou religioso, «para o coração de Deus». O «bobo de Deus» passara por tudo, já, desde que nascera em 1889 ou 1890 (a data exacta é incerta): graves traumatismos físicos e psicológicos na infância, doença mental de seu irmão Stassik, abandono por parte do pai, dificuldades económicas e de toda a ordem enfrentadas pela mãe. Depois, a relação homossexual com Diaghilev – um «caso» de ignóbil exploração do jovem, belo e genial «escravo» pobre, disposto a tudo para não morrer de fome, pelo velho, debochado e incontestado senhor do seu destino profissional –, tal como o sinistro cortejo de chacinas e misérias da I Guerra Mundial, fizeram o resto: entra em pânico, passa a ter um medo incontrolável de viver e dos que o rodeiam, da mulher, dos sogros, dos médicos, enfim, do mesquinho, brutal e indecifrável mundo dos outros.
Confidenciará: «Sou um louco que ama as pessoas», «a minha loucura é o amor pela humanidade». (…) «Não posso chorar tanto que as lágrimas me caiam em cima dos cadernos. Choro dentro de mim.» (…) Trabalhava muito, mas depois desanimei, porque vi que não gostavam de mim. Fechei-me. Fechei-me tão profundamente que não podia compreender as pessoas. Não parava de chorar…» (…) «Deixei de ser alegre porque senti a morte. Tinha medo das pessoas.»
Depois, sabe-se lá se à maneira de conclusão: «Sou um homem simples que sofreu muito. Não acredito que Cristo tenha sofrido tanto como eu tive de sofrer durante toda a minha vida.» «Tenho pena de mim mesmo, porque tenho pena de Deus.» (…) «Já não sou um homem, sou Deus. Não sou um homem vulgar, sou Deus. Amo Deus, e ele ama-me. Quero que toda a gente seja como eu.» (…) «Quero que as pessoas se amem umas às outras». (…) «Sou um homem. Sou Deus. Sou um homem em Deus.» (…) «Deus vive em mim. Eu vivo em Deus.»
Frases loucas, tão loucas quanto esta de Mestre Eckhart, vinda da Idade Média: «Deus não espera de ti senão uma coisa, é que saias de ti próprio e que permitas a Deus que seja Deus em ti.» Ou como as de São João Cruz, na «Noite Escura», «sobre o modo que a alma tem no caminho espiritual para chegar à perfeita união de amor com Deus, tanto quanto pode nesta vida». Quantas frases loucas, quantas visões e sentimentos sublimes…
Nijinski, «Cadernos – O Sentimento», Assírio & Alvim, 2004, 291 páginas